Após a goleada do Paraguai nos gramados cinéfilos portenhos, com a vitória de "Sob as Bandeiras, O Sol", de Juanjo Pereira, no 26° Festival de Cinema de Buenos Aires, o evento, consagrado pelo nome de Bafici, encerra suas atividades apontando uma série de joias audiovisuais para a cinefilia da América do Sul. Algumas são prata da casa, ou seja, atrações da pátria natal de Ricardo Darín, como o divertido "El Banner", com Marcelo Subiotto. Outras das pérolas da programação organizada sob a direção artística de Javier Porta Fouz vieram de terras distantes. "Levados Pelas Marés", do chinês Jia Zhangke, laureado com o Prêmio da Crítica na Mostra de São Paulo, foi um deles.
"Estou no Bafici desde 2001, tendo passado por diversas funções, e vejo que o festival é um lugar onde cineastas querem estar, pelo prestígio que alcançamos, refletido na quantidade de inscrições que tiveram. Cerca de 3,9 mil filmes se inscreveram e entraram 300, de várias origens", diz Porta Fouz ao Correio. "O cinema que temos na Argentina hoje é potente e tem muita variedade, apesar dos problemas políticos que temos".
Exibido no Rio e em São Paulo no É Tudo Verdade, "Sob As Bandeiras, o Sol" (no original "Bajo Las Banderas, El Sol") deixa o Bafici coroado por sua excelência de linguagem. É a produção paraguaia de maior êxito em maratonas cinéfilas estrangeiras depois da consagração de "As Herdeiras" (2018). Esse documentário é um mosaico de exuberante montagem. Sua estrutura formal é uma reação a recordações latinas de 1989, ano da queda da ditadura de 35 anos de Alfredo Stroessner. Sua saída do Poder marcou o fim de um dos regimes autoritários mais duradouros do mundo. Isso também levou ao abandono dos arquivos audiovisuais que haviam consolidado seu comando. Esse material, criado para moldar uma identidade nacional e celebrar um regime de direita, foi deixado para desaparecer da memória. Juanjo esforçou-se para evitar esse destino.
Com base na premiação do Bafici e no burburinho das plateias do festival, o Correio preparou uma lista dos títulos que mais (e melhor) garantiram êxito à empreitada de Porta Fouz, no empenho de dar à Argentina de Javier Milei uma maratona de coragem.
LA VIRGEN DE LA TOSQUERA, de Laura Casabé (Argentina): Num casamento preciso entre crítica social e dispositivos pop das cartilhas do terror, este thriller sobre o clamor do sexo na adolescência foi laureado com o Grande Prêmio da competição nacional do Bafici. Na trama, Natalia, Mariela e Josefina são amigas inseparáveis, loucamente apaixonadas por Diego, um amigo de infância. No conturbado verão de 2001, em meio a crises econômicas em terras portenhas (e seus arredores), Silvia, uma moça já adulta, junta-se ao grupo e cativa o rapaz. Desolada, Natalia põe em prática heranças místicas de sua avó, envolvendo feitiços... e cães ferozes. O realizador Benjamín Naishtat (de "Vermelho Sol" e "Puan") colaborou com Laura e escreveu o roteiro.
PAYING FOR IT, de Sook-Yin Lee (Canadá): A genial atriz de "Shortbus" (2006) se estabelece como diretora, filme a filme, consagrando sua verve autoral com esta adaptação da graphic novel 'Pagando Por Sexo", de Chester Brown. Nos anos 1990, o próprio Chester (vivido por Dan Beirne) e Sonny (Emily Lê) vivem um namoro nas raias do casamento, assombrados pelo tédio. Quando ela decide redefinir a vida, com a proposta de um relacionamento aberto (onde pode transar com os homens que deseja), ele passa a sair com profissionais do sexo e descobre uma nova (e picante) forma de intimidade. Sook-Yin dirige com elegância uma história sobre amor, sexo e não-monogamia que discute a prostituição com lirismo.
TODAS LAS FUERZAS, de Luciana Piantanida (Argentina/ Peru): Um componente de fantasia dá um colorido inusitado a esta trama de mistério salpicada de discussões de classe. A tensa montagem de Lorena Moriconi torna eletrizante a investigação conduzida pela cuidadora Marlene (Celia Santos) num contexto social de pobreza. Ela mora na casa da idosa de quem cuida. Quando sua amiga desaparece, Marlene foge à noite para investigar seu paradeiro. Pistas a levam a um ambiente de trabalho suspeito, onde conhece outras mulheres que, como ela, desenvolveram superpoderes dignos dos X-Men.
UNA QUINTA PORTUGUESA, de Avelina Prat (Espanha): Atuações comoventes de Manolo Solo e Maria de Medeiros asseguram lirismo a esta narrativa de delicados enquadramentos da diretora de "Vasil" (2022). A fotografia dionisíaca de Santiago Racaj aquece o clima deste enredo sobre recomeços. Nele, Fernando, um pacato professor de geografia, caiu num abismo sentimental após o desaparecimento de sua mulher. Sem rumo na vida, ele assume uma nova identidade e passa a trabalhar como jardineiro em uma vila portuguesa, onde faz uma amizade inesperada com o proprietário e entra em um mundo que não lhe pertence.
MINHA MÃE É UMA VACA, de Moara Passoni (Brasil): Eis a produção vencedora do prêmio de Melhor Curta da seleção internacional do Bafici. Escrito por Fernanda Frotté em duo com sua realizadora, o filme vem arrebatando olhares pelo mundo afora desde o Festival de Veneza pela direção de arte de Isabel Azevedo e pela fotografia de Carolina Costa. Em sua trama, a jovem Mia espera notícias do paradeiro da mãe. Longe da proteção materna, a menina é deixada aos cuidados da tia, imersa na paisagem mítica do Pantanal. Sob a ameaça de onças e queimadas, ela descobre que o amor pode se manifestar de maneiras inesperadas.
TOM'S 2ND SUICIDE, de Karni Haneman (Israel): Bem calçado na engenharia sonora de Ronen Nagel, este drama flerta com a finitude para celebrar a vontade de viver, amparado por um trabalho plural de sua realizadora, responsável também pelo roteiro e pela montagem. A ação se passa em 9 de março, o dia da tentativa anual de suicídio de Tom (papel da própria diretora). É também o momento em que Kobi (Adam Avidan) precisa enfrentar más notícias. O destino e um carro quebrado forçam os dois a embarcar em uma jornada surreal, com o objetivo de acabar com a vida de Tom.
O ÚLTIMO AZUL, de Gabriel Mascaro (Brasil): Respeitado por "Boi Neon" (2015) e "Divino Amor" (2019), o diretor pernambucano ganhou o Grande Prêmio do Júri da Berlinale ao criar uma distopia contra o etarismo, apoiado no talento de Denise Weinberg e Rodrigo Santoro. Numa atuação estonteante, Denise vive a septuagenária funcionária de um curtume de jacarés, na Amazônia, que se vê forçada a viver numa espécie de campo de concentração para cabeças grisalhas. A recusa de ser isolada num retiro obrigatório a impulsiona por uma jornada rio acima. A produção ganhou ainda a láurea do Júri Ecumênico de Berlim.
LUMP, de Alexandre Rockwell (EUA): Parceiro de Quentin Tarantino no esquecido "Grande Hotel" (1995), famoso na seara indie da década de 1990 por "Alguém Para Amar" (1994), o realizador de "Sweet Thing" (2020) surpreende na seara do humor com esta comédia P&B com foco nos desvalidos da América do fim da Era Biden. Seu protagonista é o abilolado detetive particular Ralph (Steven Randazzo). Sofrendo com o luto por uma perda pessoal, ele descobre um estranho caroço em seu corpo ao mesmo tempo que trava parceria profissional com um aspirante a cantor, Xavier (Joecar Hanna). Juntos, os dois embarcam em casos de solução bem improvável.
SLOCUM ET MOI, de Jean-François Laguionie (França): Um dos exercícios autorais de maior lirismo do animador por trás de "Louise En Hiver" (2016) e "A Viagem do Príncipe" (2019). A trama se passa no início dos anos 1950, às margens do Marne. Nessa ocasião, François, um garoto de 11 anos, descobre que seus pais estão construindo um barco no jardim da família, uma réplica de um famoso veleiro. O processo de construção da embarcação, visto pelo olhar de uma criança, abre deixa para o veteraníssimo cineasta (nascido em 1939) criar um painel das desilusões de sua geração.
PAI NOSSO - OS ÚLTIMOS DIAS DE SALAZAR, de José Filipe Costa (Portugal): Num exercício de sutileza, o diretor do crocante "Prazer, Camaradas!" (2019) se embrenha pela ficção a fim de narrar o calvário do líder luso António de Oliveira Salazar (1889-1970), com Jorge Mota no papel do estadista. Existe sátira no engenho dramatúrgico do roteiro escrito pelo cineasta com Letícia Simões e Daniel Tavares, numa reconstituição dos delírios salazaristas na reta final de sua vida, já distante do Poder.
LES BARBARES, de Julie Delpy (França): Mais recente exercício de direção da estrela de "A Igualdade É Branca" (1994) e "Antes do Amanhecer" (1995). A produção ironiza o bom-mocismo da política assistencial da Europa. No enredo, os cidadãos da Bretanha decidiram por unanimidade aceitar refugiados ucranianos em troca de subsídios do governo. No entanto, em vez de ver receber uma leva de imigrantes da Ucrânia, a prefeitura local acolhe (por engano) imigrantes sírios, o que causa uma série de conflitos ligados a práticas de xenofobia. Delpy faz parte do colossal elenco, ao lado de Sandrine Kiberlain e Laurent Lafitte.