Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Éo último dia para curtir a retrospectiva "Mestras do Macabro" no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio (CCBB-RJ). A derradeira sessão da mostra rola às 18h, com "O Cemitério Maldito" ("Pet Sematary", 1989), de Mary Lambert. A curadoria arquitetada pela crítica Beatriz Saldanha segue até o dia 21, no CCBB SP. Seu recorte reúne joias da tcheca Vera Chytlová; das francesas Claire Denis e Julia Ducournau; da francesa Jennifer Kent; da japonesa Kei Fujiwara; de muitas diretoras autoras nacionais. Na entrevista a seguir, a pesquisadora explica o quanto a seleção que construiu expõe a quebra de cânones num gênero regado a medo.
De que maneira o terror contemporâneo flagra e dribla os conflitos morais, como o sexismo? Acerca da correção política, como o horror se posiciona, sobretudo na seara do gore?
Beatriz Saldanha: Isso é uma escolha pessoal de cada diretora, além do meio onde ela atua. As francesas - Catherine Breillat, Julia Ducournau e Coralie Fargeat - até hoje são conhecidas por terem uma abordagem um pouco controversa no que diz respeito à sexualidade e à nudez, bem como a outros tipos de questões morais, e eu associo isso à tradição do cinema de autor que segue muito forte na França, além de uma certa indiferença em relação aos temas sensíveis no contemporâneo. O que não quer dizer que sejam sexistas. Muito pelo contrário, mas me parece que a sensibilidade delas para essas questões é diferente de boa parte do restante do mundo, que parece muito mais antenado aos debates que vêm acontecendo sobre a exploração da imagem feminina dentro do cinema. Hoje em dia, no horror contemporâneo, continuamos tendo o exemplo do "gore pelo gore", como "Terrifier 2", de Damien Leone, que é flagrantemente misógino, mas também há obras que vão literalmente mostrar um banho de sangue, como "A Substância", para discutir questões de gênero e poder.
Que novas estéticas do medo - autorais - se fizeram notar com o aumento do número de diretoras de terror?
Também nesse sentido, eu voltaria a destacar as francesas e a estética da violência, com filmes mais gráficos que vão tocar muito na temática do corpo (canibalismo, transformações corporais como metáforas para a puberdade e o desejo, a violação do corpo), mas, no geral, a estética varia bastante de realizadora para realizadora.
Qual é o pilar feminista do terror e de que forma a mostra põe em foco as bases da representatividade feminina por trás das câmeras do gênero?
Eu não sei se existe um pilar feminista do terror. O que há são mais mulheres com acesso aos meios de produção e, por isso, temos mais mulheres (assim como mais pessoas negras, mais pessoas queer) fazendo horror, o que proporciona maior diversidade de olhares. De modo geral, o que me chama mais a atenção na produção contemporânea feita por mulheres é uma abordagem mais complexa das personagens femininas, que passam de personagens com uma perspectiva fechada (da mocinha virgem ou da vilã abjeta) para protagonistas multifacetadas, muitas vezes anti-heroínas, mulheres com qualidades e defeitos como qualquer pessoa. A ideia da mostra não foi mostrar filmes com um discurso unificado. Isso nem seria possível, pois eu parti da ideia de trazer filmes de diferentes períodos, origens e contextos de produção. O meu objetivo foi, antes de tudo, mostrar como esses filmes tão distintos entre si apresentam uma riqueza temática e estilística, e como essas mulheres dominam a arte do macabro tanto quanto os diretores que, por décadas, formaram o cânone do horror. É evidente que, muitas vezes, percebemos nestes filmes características que não encontramos normalmente em filmes dirigidos por homens, como, por exemplo, a nudez e a sexualidade para além da mera exploração da imagem da mulher.
De que forma os fantasmas políticos das Américas, sobretudo das ditaduras, transparecem nos filmes das mestras do terror do presente?
No filme "Corpo" (2007), de Rossana Foglia e Rubens Rewald, esse tema surge por meio de um cadáver que aparece intacto entre as ossadas de vítimas da ditadura militar, sugerindo de maneira metafórica que este é um assunto que está longe de ter sido resolvido na nossa sociedade. "O Segredo da Família Urso" (2014), curta de Cíntia Domit Bittar, usa elementos dos contos de fada para falar dos horrores da ditadura pela perspectiva infantil. Apesar de ser um tema profundamente rico e forte, ele ainda não foi vastamente explorado pelas mulheres. Mas nesse aspecto social e político, temos filmes super interessantes como o peruano "A Teta Assustada", de Claudia Llosa. Ainda que ele esteja numa chave mais dramática, vai falar sobre a violência e o trauma dentro do conturbado contexto político pelo qual o país passava nos anos 1980. E a Anita Rocha da Silveira fala de maneira muito interessante sobre o contexto sociopolítico do Brasil de hoje, com a profusão de igrejas pentecostais e como isso pode tolher a liberdade que as mulheres levaram tanto tempo para conquistar.
Qual é a importância de se falar sobre as screen queens, as "rainhas do susto", no atual contexto das representatividades femininas no gênero?
Ao mesmo tempo em que considero importante valorizar o trabalho de atrizes que se especializaram no horror, como Jamie Lee Curtis e Barbara Crampton, considero que esse termo, "screen queen", ficou defasado porque ele remete a personagens sem muita autonomia dentro dos filmes de horror, que estavam sempre sendo assustadas, atacadas, gritando e, finalmente, resgatadas por uma figura masculina. Quando você limita uma personagem ao papel de vítima, geralmente ela não oferece muita profundidade. Hoje, como tenho dito, mulheres e homens vêm escrevendo protagonistas que vão muito além do grito.