Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

No rastro do amor maior, 'Minha Mãe É Uma Vaca' vence o Bafici

A diretora Moara Passoni no set de filmagens de 'Minha Mãe É Uma Vaca' | Foto: Katya Skakun/Divulgação

Terminado o Bafici, na Argentina, onde prevaleceu diante de produções internacionais de voltagem autoral alta como único título brasileiro em concurso, "Minha Mãe É Uma Vaca" conquistou o prêmio de Melhor Filme do festival portenho e agora vai engatar uma excursão por outros festivais internacionais, agora da Europa. O circuito começa na Bulgária, segue por Huesca, na Espanha, e senta praça em Budapeste, na Hungria. Depois, a saga de amadurecimento filmada por Moara Passoni flana entre Japão, Inglaterra, Estados Unidos e Armenia.

Sua sorte foi lançada em Veneza, em setembro do ano passado, antes de um debut nacional no Festival do Rio. Estocolmo, El Gouna e Chipre se dispuseram também a aplaudir o roteiro escrito pela cineasta em duo com Fernanda Frotté. O filme impressionou Buenos Aires pela delicadeza com que narra vivências no Oeste do Brasil.

Elogios exaltaram a direção de arte de Isabel Azevedo e a fotografia de Carolina Costa. Em sua trama, a jovem Mia (papel de Luisa Bastos) espera notícias do paradeiro da mãe. Longe da proteção materna, a menina é deixada aos cuidados da tia, imersa na paisagem mítica do Pantanal. Sob a ameaça de onças e queimadas, ela descobre que o amor pode se manifestar de maneiras inesperadas.

"Como uma diretora de cinema nascida e criada no Jardim Ângela, em São Paulo, eu só consigo fazer filmes se tiver muito apoio. E os apoios é que permitiram esse curta existir", disse Moara ao Correio da manhã, lembrando o quão fundamental foi a colaboração de Ernie Shaefer, da Mano Santa, companhia de pós-produção no México, trazido para o projeto por Sofia Geld e Daniel Liu, produtores na Uvaia Filmes.

"Foi um processo desafiador de correção de cor à distância, testando mil formas de sincronizar telas entre México e Brasil para que o trabalho se desse. Nesse momento, novamente voltamos à primeira paleta de cor que produzimos para o filme, e às referências, quase plano a plano, do que estávamos tentando atingir, além de (ter) várias conversas sobre o mood do filme e sobre que emoção estávamos tentando evocar em cada momento. Foram diversas sessões espaçadas no tempo, conforme as janelas que Ernie tinha disponível. Foi o que permitiu que a imagem respirasse entre uma sessão e outra de correção de cor e que, aos poucos, fossemos encontrando o colorido do filme".

Hoje envolvida na criação de uma série sobre a Democracia Corinthiana, Moara foi parceira profissional da documentarista Petra Costa em "Apocalipse Nos Trópicos" (2024), projetado em Veneza, e em "Democracia Em Vertigem" (2019), que concorreu ao Oscar. "O documentário me ensinou muito sobre contar histórias em diálogo com o outro, com a realidade, e me ensinou brutalmente sobre formas de narrar no cinema. Como alguém que vem do documentário e de uma formação em Ciências Sociais, esse diálogo é das coisas mais importantes para mim. No caso de 'Minha Mãe é uma Vaca', o filme é baseado em uma memória de infância. Quando eu tinha por volta de onze anos, passei três meses na fazenda de uma tia, no meio do Pantanal, descobrindo e me encantando com aquele lugar. Aos poucos, o pânico com a possibilidade de morte de minha mãe foi se esvaindo e a descoberta daquele local foi tomando conta", lembra Moara.

"O curta foi primeiro escrito a partir dessa memória. Em meio a isso, uma experiência me marcou profundamente. Uma vez por mês, eles carneavam um boi ou uma vaca para alimentar todo mundo que vivia na fazenda. Quando estava lá, laçaram uma vaca que fugia com todas as forças, e a carnearam. Testemunhar a vida se esvaindo do olho daquela vaca me marcou profundamente. E, logo, a informação de que ela estava grávida tornou aquilo tudo ainda mais intenso. Num primeiro momento, esse era o núcleo da história que eu ia filmar".

Respeitada como realizadora pelos filmes "Êxtase" (2020) e "Francesca" (2017), Moara conta que, quando chegou ao Pantanal, para filmar "Minha Mãe É Uma Vaca", encontrou uma nova prática da pecuária. Havia uma lógica onde o fogo gerado de forma artificial - para abrir espaços para pasto e gado - começava a cercar cada vez mais aquele lugar que, até então, parecia um paraíso.

"Perante essa realidade transformada, reescrevemos o roteiro a partir de conversas com pessoas que habitavam a região. O próximo passo, foi a filmagem, onde praticamente todas as falas foram improvisadas pelas pessoas que atuaram no nosso filme. Eu nunca dei o roteiro para ninguém que atuou. Eu propunha situações e perguntavam como falariam tal coisa, como fariam tal coisa", diz Moara. "Em primeiro lugar, o filme fala do maior amor, do amor de mãe. E, no caso da Mia, o que ela faz com a vaca Amorosa (assim batizada por Seu Zé da Reserva Caiman) é o que ela queria ter feito com a mãe, sem conseguir: salvá-la. Em meio ao desafio de lidar com a finitude, com a morte, está o amadurecimento de Mia. E a vinda da primeira menstruação é, sem dúvida, um ritual de passagem. O sangue, aqui, surge em um momento de transformação, uma explosão de vida. Como mulher, para mim o sangue não tem o sentido da destruição, mas sim de um ciclo, em que entro em contato e me dou conta do meu próprio corpo. O único sangue no filme pertence a Mia, e não ao gado, nem aos animais feridos, nem às pessoas mortas. Essa escolha ressignifica a narrativa: em um mundo que apaga vidas em nome do lucro, um ato radical nasce da ligação profunda de uma menina com uma vaca. Real? Imaginária? Talvez. Mas o que me interessa aqui é que essa experiência a impulsiona a tomar uma atitude inesperada e radical que, no fim, transforma sua percepção de si. O sangue irrompe como uma força de vida".