Egressa de uma pátria que presentou as telas com grifes autorais como Milos Forman, Vera Chytilová, Jan Svankmajer e Michaela Pavlátová, a tcheca Alice Nellis era uma flautista em ascensão quando decidiu dividir o tempo que dedicava a instrumentos de sopro com o cinema. Essa divisão de tarefas começou em 1996, quando decidiu cursar narrativas audiovisuais na FAMU, prestigiosa escola de Praga.
Saiu de lá em 2001 para roteirizar e filmar pérolas de metragem longa como "Mamas & Papas" (2010), "Revival" (2013), "Os Sete Corvos" (2015) e "Buko" (2022), todos incluídos da programação da 43ª da Bergamo Film Meeting. O festival italiano, inaugurado no sábado com foco em artistas do Velho Mundo, incluiu a realizadora num ciclo paralelo (hors-concours) de sua programação, revisitando seus filmes numa seção chamada "Europa, Agora!". Nessa mostra, ela conta com a companhia do alemão Christian Petzold, cineasta por trás dos cults "Afire" (2023) e "Undine" (2020), que está pela Itália a exibir tudo o que dirigiu da década de 1990 para cá.
Enquanto se formava, Alice fez de tudo: foi designer no Ministério das Relações Exteriores da República Tcheca, deu aulas e trabalhou como tradutora. Essas experiências plurais para ganhar o pão enriqueceram sua visão criativa e talharam seu olhar. Em 2002, ela alcançou os holofotes cinéfilos pela primeira vez, ao vencer a mostra New Directors do Festival de San Sebastián, na Espanha, com "Some Secrets" ("Výlet"). Estabeleceu a partir dali um prestígio que se ampliou pela teledramaturgia, com experimentos em telefilmes e minisséries. No papo a seguir, feito numa troca de e-mails, Alice faz uma radiografia de sua estética.
Qual é o retrato da realidade tcheca que seus filmes procuram levar ao mundo? Em que medida a tradição cultural de sua terra natal molda seus longas?
Alice Nellis: Tenho a tendência de perceber nossa realidade pela perspectiva de uma existência humana individual e, portanto, meus filmes, as minhas histórias são, em sua maioria, muito particulares e pessoais. Isso já nos diz muito sobre a realidade tcheca, não apenas a de hoje, mas a de toda a História, nos últimos séculos. Não somos nós que criamos a História, iniciamos guerras ou terminamos com elas. Nossas histórias aqui geralmente não são épicas. Gosto de retratar famílias e pequenas comunidades, pois acredito firmemente que é aí que podemos iniciar todas as mudanças importantes em nossas vidas. Como jovem cineasta, com certeza fui moldada pelo cinemanovismo dos anos 1960 (referência a movimentos como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo). Embora esses filmes tenham sido proibidos por 30 anos, eles ainda mostraram à minha geração um retrato sincero e despretensioso da vida normal e que pessoas normais podem fazer um grande cinema.
Você tem uma estreita ligação com o drama televisivo, com telefilmes e minisséries em seu currículo. Qual é o papel da televisão no setor audiovisual ao qual você pertence?
Durante a última década, a qualidade de algumas produções de TV, especialmente minisséries, começou a rivalizar com a produção de filmes. Com o crescimento do mercado de plataformas digitais, as emissoras de televisão agora oferecem mais espaço para algo que eu chamaria de "TV de qualidade". Sinto que isso está intimamente ligado ao fato de que as tecnologias de câmera e pós-produção tornam a filmagem em si mais acessível - no sentido da qualidade da imagem, da possibilidade de movimento da câmera e da iluminação. Portanto, nesse aspecto, acredito que uma boa produção de TV pode, em certos gêneros, competir com os filmes para o cinema. Pessoalmente, como roteirista, gosto muito do formato de minissérie, porque ele me permite criar personagens mais interessantes e em plena evolução. Mas, sob o aspecto da direção, as condições em que os roteiros são filmados ainda não são tão boas quanto as do cinema.
Sempre sinto a presença da solidão em suas personagens. O que essa solidão revela sobre as mulheres? O que há de político nisso?
É uma boa observação. Acredito que a solidão é, muitas vezes, um subproduto da falta de comunicação. Com outras pessoas, com seu parceiro, com sua família, mas também - ou principalmente - com você mesmo. As mulheres tendem a precisar mais de comunicação do que os homens e, sem ela, podem se sentir não apenas solitárias, mas também não compreendidas ou valorizadas. Meus heróis geralmente têm de enfrentar o fato de sua própria mortalidade e, sejamos honestos, a morte parece ser um assunto bastante solitário. Ser capaz de encarar esse fato pode trazer uma catarse que pode libertá-lo da solidão. Especialmente se você perceber que, nesse negócio de morrer, estamos todos juntos e essa é a única constante absoluta na condição humana que todos nós compartilhamos.