Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Encontro marcado com Christian Petzold

'Afire', do realizador alemão Christian Petzold, ganhou o Grande Prêmio do Júri da Berlinale 2023 | Foto: Marco Krugger/Schramm Film

Ainda não circularam imagens de "Miroirs Nº 3" e tampouco se sabe o atual status do novo projeto do artesão autoral alemão Christian Petzold, anunciado no fim do ano passado para ser lançado em 2025, mas já existe toda uma movimentação dos grandes festivais da Europa - a se destacar Cannes e Veneza - para ver quem acolhe o próximo exercício criativo de um diretor que vem renovando a indústria audiovisual germânica. "Em Trânsito" (2018) e "Fantasmas" (2005) são alguns de seus cults. Sabe-se que Paula Beer, sua diva, será a estrela do filme que ele tem para lançar.

Ela vive uma jovem estudante de piano que se envolve em um acidente de carro no qual seu namorado morre. Milagrosamente, ela sobrevive ilesa ao acidente e é acolhida por uma família. Nesse clã, encontra conforto e apoio para retomar sua vida, mas, com o tempo, percebe que há algo errado com as pessoas que a receberam cheias de mimo. Há uma torcida para novos detalhes desse mistério - e dessa empreitada - sejam revelados durante o tributo ao realizador, hoje com 64 anos, na 43ª edição da Bergamo Film Meeting, que começa neste sábado. Criado em 1983, esse evento italiano propõe uma triagem das conexões audiovisuais do Velho Mundo a cada nova programação.

Ao longo de nove dias, a contar do fim de semana, cerca de 160 filmes, entre curtas e longas, passam por lá. Na competição oficial, com sete ficções em concursos, há uma coprodução da Alemanha com o Chile e o Uruguai, o faroeste "Oro Amargo", de Juan Olea, que promete temperar a Itália com especiarias da América do Sul. Vai ter ainda retrospectiva da atriz britânica (nascida na Bélgica) Audrey Hepburn (1929-1993) e do realizador georgiano Otar Iosseliani (1934 - 2023), além de comemoração do centenário do cineasta polonês Wojciech Has (1925-2000). Petzold chega nessa maratona cinéfila como um veio de entendimento do que se passa hoje no cenário político alemão. O longa que pavimentou sua trajetória por trás das câmeras, "The Sex Thief" ("Die Beischlafdiebin", 1998), será exibido no sábado, como abre-alas da Bergamo Film Meeting

"O afeto nos dá uma identidade de pertencimento", disse Petzold ao Correio da Manhã num papo via telefone, durante a produção de "Afire" (2023), seu último longa, que ganhou, entre muitos troféus, o Grande Prêmio do Júri da Berlinale e a láurea de Melhor Filme no Festival de Palic, na Sérvia.

Nascido na cidade de Hilden, ele iniciou em 1988 uma das carreiras mais sólidas de sua pátria entre realizadores que viraram grife. "Undine" (laureado com Prêmio da Crítica na Berlinale de 2020) e "Jericó" (indicado ao Leão de Ouro em 2008) consolidaram sua notoriedade como cineasta com verve de autor.

"Discutir identidade, a partir do cinema, é um processo antigo, que eu vejo até em Hitchcock", disse Petzold. "A Alemanha é um país assolado por uma culpa histórica que nos é imputada pelo que se passou durante o nazismo. Mas durante os bombardeios que se seguiram ao fim da II Guerra, em 1945, destruíram não só nossos prédios: acabaram com a nossa cultura, com a nossa moral e com a nossa ética. Acabaram com a nossa sensação de pertencimento. Eu faço parte de uma geração de diretores que busca as histórias que construíram essa grande História em que nos rodeamos de fantasmas. Por isso, nos meus filmes, há personagens ausentes, pessoas que desaparecem, mas deixam seu espectro", completou.

Embalado pelo hit "In My Mind", do grupo vienense Wallners, o novo longa de Petzold estreou no Brasil via Imovision. A distribuidora de Jean Thomas Bernardini foi responsável por trazer ao Brasil os cults anteriores desse artesão autoral germânico. Alguns deles foram lançados na grade da plataforma digital da distribuidora, o Reserva Imovision - e seguem por lá: "Phoenix" (2014), "Yella" (2007), "A Segurança Interna" (2000) e o já citado "Jericó". São longas que ilustram sua relação de intertextualidade com a literatura, que se depura a cada novo título. Um dos primeiros trabalhos dele a chegar aqui foi "Bárbara" (2012), que está no cardápio da Bergamo Film Meeting. Há como assisti-lo aqui via streaming, na MUBI

"Meu esforço é tirar a História de uma inércia arquetípica, é proteger os personagens do lugar comum, é fomentar uma nova perspectiva para a imagem,", disse Petzold, em Berlim. "Num universo repleto de narrativas de pessoas que precisam se esconder e se reinventar, construído pelo cinema ao longo de décadas, o amor aparece como um norte para os personagens. Hoje, eu percebo o mundo à minha volta, e sua sensibilidade, pelos ruídos que ele produz. Quando um cineasta procura locações onde filmar, ele, de costume, preocupa-se com o visual e busca imagens de referência, confiando ao olhar o desenho de sua narrativa. Já eu, preciso ouvir o que esse lugar expressa, para que ele me conte sua história".

São lições como essa que ele promete levar à Bergamo Film Meeting.