Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Os Malês ainda estão aqui...no Brasil e na África

'Malês' recria em tons épicos a revolta muçulmana em solo baiano no século XIX | Foto: Vantoen Pereira Jr/Divulgação

Mais prestigiado evento africano de interseção entre cinema dirigido por populações pretas e a reflexão sociológica decolonial, o Festival Panafricain Du Cinéma Et De La Télévision De Ouagadougo - mais conhecido como Fespaco - vem abrindo veias latinas nas telas de seu país sede, Burkina Faso, desde 1969, quando iniciou suas atividades, e, este ano, em sua 29ª edição, serviu de plataforma de internacionalização para um titã do Brasil. Antônio Pitanga foi até lá a fim de representar o cinema brasileiro na seleção oficial de longas-metragens dessa maratona audiovisual da África, inaugurando a carreira internacional de seu "Malês".

Lançado no Festival do Rio, em outubro, o filme marca o regresso do emblemático ator do Cinema Novo à direção, 47 anos depois de seu primeiro exercício como realizador, "Na Boca do Mundo" (1978). Outras produções nacionais estiveram por lá, como "Deixa" e "Quem É Essa Mulher?", de Mariana Jaspe; "Othelo, o Grande", .doc de Lucas Rossi; e "Zion", de Licino Januario.

A presença de Pitanga, hoje com 85 anos, contextualiza para a intelectualidade da África quão grande é a ferida aberta do racismo em terras sul-americana, e o faz sob a ótica de um mestre.

"Toda a emoção por ter a oportunidade de estar no Fespaco, esse evento que e o mais importante festival do cinema negro de toda a África, podendo trazer o 'Males', contar a história dele, onde tudo começou, exatamente nesta área aqui, no norte da África, em Benin, no Togo, Senegal, Nigéria", disse Pitanga ao CORREIO DA MANHÃ, por whatsapp, lá do Bukina Faso, que sediou uma maratona de projeções entre os dias 22 de fevereiro e 1° de março. "O 'Malês' esta cumprindo a sua missão e daqui segue para outros países da África, porque eles estão nos procurando. Estão querendo exibir nosso filme em Madagascar, Senegal, África do Sul. Então, eu estou muito feliz. Acho que como a gente está vivendo a consagração de 'Ainda Estou Aqui' no mundo, nos ainda estamos aqui como Malês".

A fala do astro de "A Idade da Terra" (1980) e "Casa de Antiguidades" (2020) se refere a um episódio histórico de resistência. Com base num enredo de Manuela Dias (autora da nova versão da novela "Vale Tudo") produzido por Flávio R. Tambellini, "Malês" recria a Bahia do século XIX, em meados de 1830. Na ocasião, uma rebelião começou a ser arquitetada por africanos muçulmanos, chamados de malês. A revolta se passa no final do Ramadã, mês do calendário islâmico em que o jejum é uma forma de celebrar Alá. Após o fracasso dessa revolta, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra as populações pretas no Brasil aumentou. Apesar disso, o exemplo de luta e de resistência deles marcou a História não apenas por uma aula de estratégia política, mas pelo simbolismo intelectual de um povo que combateu o açoite com boas ideias. Num elenco em estado de graça, com destaque para Camila Pitanga e Patrícia Pillar, Rodrigo de Odé explode em cena, triunfante, em várias sequências, numa atuação memorável.

"Para mim, foi tudo uma grande emoção, sobretudo quando a plateia aplaudiu de pé o filme 'Males' dizendo: 'Gratidão. Obrigado'. É uma história que eles não conheciam, como o Brasil também não conhecia. A gente traz o século XIX para poder conversar entendendo a tragédia que foi o sequestro da escravização", diz Pitanga.

Durante as filmagens, ele dividiu seu tempo na direção com seu trabalho de ator, encarnando a figura de Pacífico Licutan, um dos líderes do levante, que defendia a importância da participação de diferentes aldeias e religiões para o sucesso da revolta.

"Eu estou em um momento tão feliz da vida, de vivenciar essa oportunidade incrível de poder dialogar, através do cinema, com o levante mais importante do Brasil", diz Pitanga que contou com o bamba da edição Quito Ribeiro na montagem. "O 'Malês' é um projeto que começou quando eu filmei 'Idade da Terra', do Glauber Rocha. Ele queria levar os baianos todos de volta para a Bahia, e me disse: 'Tá na hora de a gente voltar pra casa, Pitanga'. E com essa ideia de retornar, um dos projetos dele era produzir 'Malês'. Como o Glauber morreu, ainda ali no começo dos anos 1980, o projeto ficou adormecido até que, vendo 'Amistad', do Spielberg, eu retomei a ideia. Fiz o argumento com Orlando Sena e entreguei para a Manuela Dias escrever o roteiro. Nascemos, enfim. Depois de percorrer universidades (com pesquisas sobre os Malês), posso voltar ao lugar de origem, onde tudo começou, a África".