Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um Oscar pra chamar de nosso?

Fernanda Torres conquistou corações e mentes no Brasil e exterior em 'Ainda Estou Aqui'. Sua atuação arrebatadora no longa de Walter Salles foi reconhecida com mais um prêmio, desta vez em Madri | Foto: Alile Dala Onawale/Divulgação

Com uma bilheteria global hoje estimada em US$ 27,2 milhões, graças a salas lotadas nos Estados Unidos, "Ainda Estou Aqui" amplia, dia após dia, sua força para realizar um sonho brasileiro - que soma 80 anos cravados - de ganhar um Oscar.

Em 1945, o maestro Ary Barroso (1903-1964), de Ubá (MG), foi caçar o prêmio, em nosso nome, ao dividir com Ned Washington (1901-1976) uma nomeação à estatueta de Melhor Canção por "Brasil" (1944), de Joseph Santley (1889-1971), com a música "Rio de Janeiro". Ela acabou preterida. Venceu "Swinging on a Star", de "O Bom Pastor". Não tardou, contudo, para que um longa-metragem de nossa lavra, "O Pagador de Promessas" (1962), de Anselmo Duarte (1920-2009) - aliás, nossa única Palma de Ouro em 77 anos de Festival de Cannes -, entrasse no páreo das produções de CEP estrangeiro (ou seja, não estadunidenses). Concorreu em 1963 e perdeu para "Sempre Aos Domingos", da França, dirigido por Serge Bourguignon.

Outras produções tentaram chegar onde o diretor Walter Salles e a atriz Fernanda Torres estarão neste domingo de Carnaval, ou seja, na boca de vencer. Deste lado, a cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, a ser realizada no Dolby Theatre, na Califórnia, será televisionada pela TNT e pela Globo, além de ser transmitida pela MAX, no streaming, a partir de 21h deste 2 de março.

Corações nacionais hão de bater forte nas três vezes em que a adaptação do romance "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva, produzida por Maria Carlota Bruno e Rodrigo Teixeira, for citada pelo apresentador Conan O'Brien e por duplas de artistas convocadas para anunciar as categorias.

Esta reportagem é parte de uma série de análises feitas pelo Correio da Manhã sobre possibilidade de consagração do atual fenômeno de bilheteria de Waltinho, que vendeu cerca de 5,2 milhões de ingressos em nosso circuito. Ostenta 47 prêmios incluindo o Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática, dado a Fernanda Torres, no dia 5 de janeiro.

 

Ainda estamos sonhando

Ainda Estou Aqui | Foto: Adrian Tejido/Divulgação

Existem chances sólidas de consagração de "Ainda Estou Aqui" na frente do Filme Internacional, apesar do prestígio do misto de thriller e drama "A Semente do Fruto Sagrado", dirigido pelo iraniano Mohammad Rasoulof, que concorre pela Alemanha. Como o cineasta é proscrito em sua pátria, sob a acusação de ferir a dignidade nacional com suas denúncias de crimes de estado, ele fez ninho em terras germânicas, que coproduzem a fita. Fala de um juiz que enlouquece ao perder uma arma e se volta contra a mulher e as filhas. O longa ganhou o Prêmio Especial do Júri de Cannes, em maio passado, mas teve uma arrecadação ínfima em circuito (US$ 5,7 milhões). É nesse quesito, faturamento, que o longa de Walter Salles encontra um de seus diferenciais.

Estrela dos humorísticos "Os Normais" e "Tapas e Beijos" e de peças teatrais populares como "A Casa dos Budas Ditosos", Fernanda Torres foi indicada ao Oscar por seu desempenho no papel da advogada e ativista Eunice Paiva (1929-2018), dividido entre ela e sua mãe, a diva Fernanda Montenegro, em fases distintas da vida da personagem.

Em 1971, Eunice teve seu marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), levado para depor por agentes armados do estado, em seus tempos de farda verde oliva. Nas décadas seguintes, ela se embrenhou numa busca pelo paradeiro dele e numa cruzada contra a tortura e os crimes do governo militar. É essa peleja que faz de "Ainda Estou Aqui" um rasga-coração por onde passa, desde sua primeira exibição, em setembro, no Festival de Veneza, onde ganhou a láurea de Melhor Roteiro.

Na frente das atrizes, enxerga-se o favoritismo de Demi Moore, por seu comeback (jargão pop para regresso à ribalta) em "A Substância", terror hoje em cartaz no streaming MUBI. O que faz dela "favorita" foi a conquista do prêmio do Screen Actors Guild (SAG), o sindicato de atores dos Estados Unidos, que é a massa votante mais volumosa da Academia. Nalgumas ocasiões, essa condição de "já ganhou" atribuída pelo SAG bateu na trave. Ano passado mesmo, houve um caso desses. Lily Gladstone foi laureada pela instituição sindical, por "Assassinos da Lua das Flores", e, na hora H, perdeu para Emma Stone, em "Pobres Criaturas". Logo, Torres pode, sim, ser agraciada com um troféu dourado neste domingão. Estima-se que seu discurso terá mimos para a mãe, Fenandona, que quase foi oscarizada em 1999, por "Central do Brasil", também de Waltinho, perdendo para Gwyneth Paltrow em "Shakespeare Apaixonado".

De volta à ficção depois de um hiato de doze anos, iniciado depois de ter laçado "Na Estrada", em 2012, Walter conseguiu um feito raro ao disputar no terreno do Melhor Filme. Em 1986, o Brasil foi concorrer nessa mesma franja (a de maior relevo da Academia) com "O Beijo da Mulher-Aranha". A adaptação cinematográfica do romance homônimo de Manuel Puig (1932-1990) foi produzida pela FilmDallas Pictures em duo com a paulistana HB Filmes. Concorreu também na categoria de Melhor Direção, representada pelo argentino de Mar Del Plata naturalizado brasileiro Hector Eduardo Babenco (1946-2016). Acabou que o longa com Sonia Braga só venceu noutra latitude, a de Melhor Ator, celebrizando William Hurt (1950-2022).

É praxe as vitórias de Melhor Filme ficarem com concorrentes norte-americanos ou ingleses, só que algumas exceções de fizeram notórias neste século. Em 2012, "O Artista", uma aulão de memorialismo em PB de Michel Hazanavicius, assegurou o Oscar de Melhor Filme para a França. Em 2020, foi a vez da Coreia do Sul, com "Parasita", de Bong Joon Ho.

Este ano, os nove rivais de "Ainda Estou Aqui" são: "Duna: Parte II"; "O Brutalista"; "Anora"; "Um Completo Desconhecido" (cinebiografia do cantor Bob Dylan, que estreia no Brasil nesta quinta-feira); "Wicked"; "Conclave"; "Nickel Boys"; o supracitado "A Substância"; e "Emilia Pérez".

Este último, musical, foi o longa com mais indicações no geral (13 ao todo), mas despencou nas especulações depois do vazamento de uma série de postagens de tom ofensivo (racistas inclusive) de sua estrela, a espanhola Karla Sofía Gascón. Ela interpreta um chefão do tráfico do México que se submete a uma operação para transicionar e renasce com identidade social feminina, chamando-se Emilia. Uma de suas atrizes, Zoe Saldaña, é a opção mais cotada para o prêmio de Melhor Coadjuvante. Estima-se ainda uma estátua para a canção "El Mal".

Desse coletivo, quem aparenta mais chances de destronar "Ainda Estou Aqui" é "Anora". Um atestado audiovisual da saúde criativa da seara autônoma aos grandes estúdios, o longa lançou sua candidatura ao Oscar assim que conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2024, em maio, coroando a autoralidade de seu realizador, Baker. Há cerca de duas semanas, a produção de US$ 6 milhões dispara como favorita à láurea dos EUA, depois de ter conquistado dois dos prêmios sindicais mais importantes de Hollywood, o DGA (da guilda de cineastas) e o PGA (da guilda de produtoras e produtores).

O selo de qualidade autoral que Baker carrega há uma década, desde o sucesso de "Tangerina" (2015), vem não apenas de sua estética nevrálgica, de planos-sequência trepidantes, mas de sua recorrente imersão no dia a dia dos profissionais do sexo. Abordou a prostituição em "Projeto Flórida" (uma sensação da Quinzena de Cineastas de Cannes em 2017). Falou de um astro pornô em busca de emprego em "Red Rocket" (2021). Agora, seu novo longa, indicado ao Oscar em seis categorias (inclusive a de Melhor Filme), faz de uma stripper de 23 anos, Anora Mikheeva (ou Ani para os íntimos... e clientes), sua personagem central. A atuação de Mikey Madison torna Ani uma figura tridimensional nos afetos, nas carências e na coragem de peitar machos escrotos. Não por acaso, ela é uma das concorrentes mais fortes da carioca Fernanda Torres (indicada por "Ainda Estou Aqui") ao troféu de Melhor Atriz na caça à estatueta dourada mais cobiçada da indústria cinematográfica.

Nascido em Nova Jersey, há 53 anos, Baker sabe filmar com pouco dinheiro, como todo artista indie do bom, como Haynes falou. Escreveu, dirigiu e montou essa espécie de Cinderela sem sapatinho de cristal, que já faturou US$ 36,5 milhões nas bilheterias. Sua estreia no Brasil expande os dividendos do longa na América Latina. Sua precisão na condução de Mikey nos sets é notável, assim como seu diálogo com cânones do humor. "Fui conversar com as tramas românticas do cinema dos anos 1980 extraindo delas o que têm de mais cômico", disse o realizador numa entrevista Zoom organizada pela Golden Globe Foundation, na qual falou com o Correio da Manhã.

Em sua cartografia da vida noturna do Brooklyn, ele acompanha as doideiras que se passam com Ani depois que ela se envolve com o filho mucho louco de um oligarca russo, o moleque Ivan (Mark Eydelshteyn), que conhece no clube onde faz strip-tease. Um momento de conto de fadas se desenha para a moça quando Ivan propõe que eles se casem em Las Vegas. Quando a notícia desse matrimônio às cegas chega à Rússia, despertando a fúria da mãe de Ivan, sua ilusão de uma vida de luxo e riqueza é ameaçada. Em paralelo, um dos prestadores de serviço do ricaço eslavo, o segurança Ivan (Yura Borisov, indicado ao Oscar de coadjuvante), começa a se encantar por ela. Esse torvelinho de sexo, festas e decepções põe à prova todo o talento de Baker.

Se ele vencer, o jeito indie de se contar histórias será louvado. Ganhe ou não, o destino de Waltinho e o de Fernanda Torres já está sendo reescrito, aos olhos do mundo e de nossa torcida. Que vençamos!