Duplamente indicada ao Urso de Ouro, com "Girls on Wire", de Vivian Qu, e "Living the Land", de Huo Meng, a China ainda não arrebatou a Berlinale como fez em anos anteriores, quando encontrou na maratona cinéfila germânica o primeiro veio de consagração para as estéticas em voga em seu audiovisual desde o fim da década de 1980. Seus dois concorrentes ao prêmio de maior relevo do evento tiveram recepção morna. Paralelamente ao festival, uma animação de CEP e DNA chineses lota salas de projeção, alcançando uma bilheteria que já ultrapassa US$ 1 bilhão: "Ne Zha 2". A resposta que a curadoria berlinense não sabe dar acerca da pátria que já consagrou gigantes da direção como Jia Zhangke ("Plataforma") é: por que razão o drama "Um Segundo" ("One Second"), escalado para concorrer em sua edição de nº 69, apoiado na fama do realizador Zhang Yimou, foi arrancado da seleção às vésperas de ser exibido, sem qualquer explicação? Uma pergunta complementar: onde essa joia foi parar?
Pilar histórico da cinematografia asiática, Yimou tem hoje 74 anos e ficou conhecido por cults como "A História de Qiu Ju" (Leão de Ouro de 1992). Lançou "Article 20" no ano passado e, vez por outra, emplaca um blockbuster em sua pátria. É difícil entender os motivos que levaram a exclusão de seu "Um Segundo" ("Yi Miao Zhong" no original) da Berlinale de 2019. Hoje Incluído na grade alemã da plataforma Amazon Prime, a produção ficou engavetada por dois anos, até estrear na abertura do Festival de San Sebastián de 2021, na Espanha. Sua carreira limitou-se a uma sessão de gala em telas espanholas, sem chance de outras vitrines, e nunca estreou comercialmente no Brasil.
Na ocasião de sua entrada na disputa do Urso dourado, "Um Segundo" foi extirpado da grade da Berlinale sem aviso prévio. Saiu sem justificativa coerente. A desculpa dada - não pelo cineasta, mas pelo governo da China, famoso por sua natureza castradora em relação a obras de arte - foi: a produção ainda não estava 100% finalizada. O rumor generalizado: agentes governamentais teriam reprovado a dimensão política da narrativa de Yimou, censurando-a para cortes, que demoraram uns 20 meses.
No fim de 2021, o Ocidente soube que, em meio à pandemia, o filme, baseado em um romance de Yan Geling, foi lançado em terras asiáticas, sem alarde algum. Não havia sinal de ela ter espaço na Europa ou nas Américas até que Jose Luis Rebordinos, diretor artístico de San Sebastián, resolveu convidar o longa para abrir sua maratona, concorrendo à Concha de Ouro. Foi uma decisão feliz, uma vez que se trata de um espetáculo visual comovente.
No enredo de "Um Segundo", um prisioneiro é enviado a um campo de trabalho no noroeste desolado da China durante a Revolução Cultural do país. Usando sua inteligência, com o único propósito de encontrar um rolo de película contendo um noticiário (o chamado "cinejornal"), ele escapa e se dirige para o cinema em uma cidade local. Nesse documentário, existem imagens de sua filha, há muito sumida.
Ao chegar natal sala de projeção, ele espera encontrar o tal rolo de filme e conseguir um contato com a menina. No caminho, encontra uma jovem que se apodera do carretel com a película e foge com o material. Curiosamente, este objeto enigmático, que ambos cobiçam por razões muito diferentes, vai se tornar a semente de uma amizade inesperada. Fala-se, na China, que "Um Segundo" é o melhor trabalho do cineasta dos anos 2000 pra cá.
Recentemente, ele lançou na China um frenético thriller de espionagem chamado "Luta Pela Liberdade" ("Cliff Walkers"), cuja bilheteria beira US$ 181 milhões. Zhag Yi (de "Flores do Oriente") lidera o elenco de uma trama sobre espiões comunistas treinados pela URSS.
Seu lançamento de maior visibilidade em anos recentes foi a superprodução "A Grande Muralha" (2017), com Matt Damon, Pedro Pascal e Willem Dafoe.
É difícil aceitar o fato de o Cinema valorizar tão pouco a obra de Yimou mesmo sabendo de toda a sua contribuição seja em termos de cifras altas, seja em termos estéticos, afinal foi ele, lá atrás, em 1987, quem apresentou a realidade chinesa moderna ao mundo, quando seu "Sorgo Vermelho" ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Foi a partir dele - e de Chen Kaige, com "Adeus, Minha Concubina", de 1993 - que uma China de implosões e de geopolíticas outras que não a da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung ganhou as telas do planeta. Ali, abriu-se um terreno que para uma esquadra asiática de diferentes latitudes daquele continente pudesse ganhar circuito global. Se não bastassem filmes de tessitura dramática sofisticada como "Tempo de Viver" (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 1994) e o belo "Nenhum a Menos" (Leão de Ouro em Veneza, em 1999), ele ainda surpreendeu exibidores com as bilheterias milionárias de "Herói" (2002) e da obra-prima "O Clã das Adagas Voadoras" (2004). Porém, a fama de pelego - por ele já ter sido simpatizante do lado mais reacionário do Estado, ampliada quando dirigiu a festa de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008 -prejudicou qualquer boca a boca fervoroso em prol de sua arte. O desejo de filmar com astros de Hollywood, como o galês Christian Bale, em "Flores do Oriente" (2011), tornou o diretor mais polêmico na visão dos puristas.
A Berlinale de 2024 segue até o dia 23. No sábado, o júri presidido pelo cineasta americano Todd Haynes anuncia os vencedores. "O Último Azul", de Gabriel Mascaro (Brasil); "Dreams", de Michel Franco (México); e "Blue Moon", de Richard Linklater.