Incumbindo-se da tarefa de inaugurar os trabalhos da 75ª Berlinale, moderando a mesa de debates do júri oficial deste ano, presidido pelo diretor Todd Haynes, Tricia Tuttle, a atual curadora do festival alemão, recém-empossada no cargo, explicou que "a arte da escuta" sempre foi o atributo principal do evento. Por isso, ao sair da direção artística do BFI London Filme Festival para assumir a guarda da maratona cinéfila germânica, a programadora quis emular essa habilidade de "escutar" abrindo seus ouvidos para os ecos autorais do Presente. Ouviu expressões de indignação, lamentos e brados de guerra, mas soube decantar cânticos de prospecção nada catastrofistas, a fim de compor uma seleção que mira o porvir, do mundo e da própria arte cinematográfica. Não por acaso, escalou uma produção pautada pela esperança para representar o Brasil na corrida pelo Urso de Ouro: o estonteante "O Último Azul", rodado por Gabriel Mascaro. Confira a seguir o que Berlim viu de melhor além dessa joia nacional.
"A MELHOR MÃE DO MUNDO", de Anna Muylaert (Brasil): Shirley Cruz demarca para sempre sua relevância como atriz de escopo internacional ao viver a catadora de material reciclável Gal, com base em um vasto espectro de gestos, usando o silêncio como um cinzel para esculpir a dor de sua personagem. O dilema de Gal é proteger a filha e o filho, ambos menores, do atual companheiro, um segurança que parte pra pancada quando exagera na cerveja. A direção da realizadora de "Que Horas Ela Volta?" (2015) cartografa uma São Paulo a céu aberto, resiliente.
LITTLE TROUBLE GIRLS ("Kaj ti je deklica"), de Urška Djukic (Eslovênia): Um estudo sobre o benquerer e as sequelas que ele pode trazer no despertar da primavera da vida. Na trama, montada com elegância, Lucia, uma jovem introvertida de 16 anos, entra para o coral feminino de sua escola católica, onde faz amizade com Ana-Maria, uma aluna popular e sedutora do terceiro ano. Durante um retiro de fim de semana em um convento remoto no campo, para ensaios intensivos, a crescente fascinação de Lucia por um restaurador começa a prejudicar seu vínculo com Ana-Maria e o restante de suas colegas de canto. Em meio a um ambiente desconhecido e ao despertar de sua sexualidade nascente, Lucia se vê questionando suas crenças e valores.
MAYA, DONNE-MOI UN TITRE, de Michel Gondry (França): Cerca de 21 anos depois de rodar "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças" (2004), o mestre do videoclipe resolve apostar na animação, fazendo um experimento nas raias da colagem, estruturado como uma carta de amor à sua filha. Faz dela personagem, numa reflexão sobre como as crianças reinventam a realidade a partir de referências banais do cotidiano, como batatas fritas.
DUAS VEZES JOÃO LIBERADA, de Paula Tomás Marques (Portugal): A partir das vivências de um corpo avesso ao binarismo histórico, inconformado com o dito "determinismo biológico", este experimento poético festeja o desejo de pessoas que almejam ser as profetas de suas próprias histórias, embora a Inquisição cruze seu caminho.
NO BEAST, SO FIERCE ("Kein Tier. So Wild."), de Burhan Qurbani (Alemanha): Cinco anos depois do visceral "Berlin Alexanderplatz" (2020), o realizador renano de origem afegã volta à Berlinale com uma reinvenção de "Ricardo III" centrada nas quadrilhas de origem árabe. Kenda Hmeidan tem uma atuação de escaldar o frio alemão no papel de Rashida, a filha mais nova o clã York, que ascende como líder do submundo de Berlim. Sua forma de retratar tiroteios deixaria Vin Diesel com inveja.
BEGINNINGS ("Begyndelser"), de Jeanette Nordahl (Dinamarca): Destaque de "A Garota da Agulha" (hoje na MUBI e no páreo do Oscar), Trine Dyrholm foi premiada pela Berlinale em 2016, por "A Comunidade" e, desde então, filme após filme, ela se impõe como uma estrela de prestígio global, sempre levando a potência dramatúrgica escandinava consigo. Em seu filme mais recente, Trine vive Ane, cujo casamento com Thomas está nos finalmentes, pois ele já tem uma namorada. Depois que ela sofre um derrame, ele decide ficar, reinventando a relação.
THE OLD WOMAN WITH THE KNIFE ("Pa-gwa"), de Min Kyu-dong (Coreia do Sul): Eis a cota anual de thrillers da terra de "Parasita" (2019). Sua estrela, Lee Hye-young, tem uma elegante atuação no papel da matadora Hornclaw (Hye-young). Ela se sustenta desde os anos 1970 como assassina. Na briga com faca, ninguém ganha dela. Sua vida mundana, mas sangrenta, toma um rumo inesperado quando conhece um jovem assassino cheio de gana que deseja trabalhar ao seu lado. Ela reluta e refuta, mas saca o talento do moço. Aos poucos, um incidente do passado vem à tona, num indício de que ele esconde uma sujeira da grossa.