Por: Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'A Melhor Mãe do Mundo’ rende à atriz Shirley Cruz lugar no Panteão das estrelas nacionais

A Melhor Mãe do Mundo | Foto: Divulgação

Enquanto corria mundos à frente de “Alfazema” (2019), um dos títulos de maior vigor do curta-metragem nacional, Shirley Cruz brilhou em novela (como Gláucia, em “Bom Sucesso”) e deu o ar de seu talento no único filme brasileiro (ainda que de diretor americano, Paxton Winters) a ganhar a Concha de Ouro de San Sebastián, “Pacificado”. Credenciais (e vigor dramático) ela tinha de sobra para encarar o papel principal do mais recente longa-metragem da paulista Anna Muylaert, “A Melhor Mãe do Mundo”, estreado nesta sexta-feira na 75ª Berlinale.

Não surpreende, portanto, que ela seja alçada ao Panteão das estrelas sul-americanas (Norma Aleandro, Paulina García, Fernanda Torres) que foram ali, botar a Europa no bolso, num dos grandes festivais do Velho Mundo, para voltarem consagradas. O que ela entrega, no regresso da realizadora de “Que Horas Ela Volta?” (2015) à Alemanha, é um desempenho visceral, que ultrapassa o limite da palavra, num ferramental físico de gestos que impressionou plateias.

Faz tempo que a Berlinale abre apoteoses para nossas intérpretes, vide Marcélia Cartaxo (“A Hora da Estrela”), Ana Beatriz Nogueira (“Vera”), Carla Ribas (“A Casa de Alice”), Maria Ribeiro (“Como Nossos Pais”) e a diva das divas, Fernanda Montenegro, premiada lá, em 1998, com “Central do Brasil”. Shirley se junta agora a esse bonde, num trabalho de composição doce, sem ações bruscas, que lembra a interpretação da cantora congolesa Véro Tshanda Beya Mputu em “Félicité” (Grande Prêmio do Júri no evento alemão, em 2017). Sua cumplicidade com as demais atrizes em cena (sobretudo com Katiuscia Canoro) se faz notar por engasgos, mágoas represadas em silêncios e olhares fuuuuundos.

Lá se vão nove anos desde que Anna Muylaert estreou “Mãe Só Há Uma” no Panorama da Berlinale e, nessa sua volta, amparada na fotografia de Lílis Soares, ela constrói uma mistura de “Noites de Cabíria” com “O Cortiço”. Os trejeitos de arlequina de Giulietta Masina saltam à cabeça quando Gal, uma catadora de material reciclável (interpretada por Shirley) aparece pela primeira vez, numa delegacia, num apelo à Lei Maria da Penha, a fim de relatar a violência de que foi vítima em seu lar. Traz uma ferida no rosto, à altura do olho, decorrente de uma carraspana do marido, o segurança Leandro, (Seu Jorge), que vira uma besta-fera ao se encher de cerveja. No empenho para fugir dele, ela coloca seus filhos pequenos em sua carroça e atravessa a cidade de São Paulo. Pelo caminho, enfrenta os perigos das ruas enquanto tenta convencer as crianças, Rihanna e Benin, de que estão vivendo uma aventura em família.

“A Vida É Bela” (1998) é outra referência que brota de nossa cinefilia frente ao que Muylaert nos dá, mas os caminhos percorridos por essa realizadora não dão espaço ao estratagema pícaro que Roberto Benigni explorava tão bem. No filme da cineasta de uma SP corinthiana sobrepõem-se a aspereza e a desilusão. Bem Cabíria mesmo...

Lourenço Mutarelli, maior quadrinista vivo do país, autor de “A Confluência da Forquilha” e do romance “O Cheiro do Ralo”, tem seu quinhão de holofotes na narrativa, como o frentista que Gal enxerga como um paizão. O escritor e criador de HQs tem duas sequências memoráveis para alargar os limites da inconstância numa espécie de “After Hours” da resistência inerente à maternidade. Pena não estar concorrendo a prêmios. Shirley merece um pela retidão.

A Berlinale termina no dia 23.