Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Expectativas espanholas

Três anos depois de sua consagração na Berlinale, 'Alcarràs', de Carla Simón, segue sendo um hit no streming | Foto: MUBI/Divulgação

 

Embora não tenha emplacado nenhum potencial sucesso na grade da Berlinale deste ano, a Espanha anda fazendo barulho na ala de mercado do evento alemão, o European Film Market (EFM), com o projeto mais recente de uma cineasta que se consagrou em solo germânico: a catalã Carla Simón. Há uma forte expectativa por seu novo longa-metragem, 'Romería", que inda não divulgou trama ou elenco. Estima-se que a produção vá concorrer em Cannes, em maio. A especulação vem do prestígio conquistado por Carla ao ganhar o Urso de Ouro (de um júri do qual o cearense Karim Aïnouz era jurado) com "Alcarràs". Esse delicioso estudo sobre a vida em família ganhou vitrine nobre no Brasil na plataforma digital MUBI, depois de ter arrebatado a Mostra de São Paulo. "Tentei dar voz à casualidade a partir da arte do encontro, que minha prática documental me ensinou. Tentei levar o exercício de mirar pessoas em suas vivências particulares para uma ficção que reflete os dilemas reais da Europa rural de hoje", disse Carla ao Correio da Manhã em Berlim, um dia antes de conquistar o Urso dourado.

Sua consagração é parte de um renascimento comercial do cinema de sua pátria. A inclua a TV nisso, além dos streamings. Existem camisetas, canecas, máscaras e toda a sorte de souvenires de "La Casa de Papel" à venda pela Europa - assim como no Brasil - ilustrando o sucesso que uma narrativa talhada na indústria ibérica alcançou além das fronteiras de sua pátria, graças ao esforço estatal pra tratar a cultura como um produto tipo exportação. Recentemente, o Festival de San Sebastián, no norte da terra de Cervantes, exibiu "Apagón", uma minissérie dirigida por talentos classe AA do cinema ibérico, como Rodrigo Sorogoyen, Raul Arévalo, Isa Campo, Isaki Lacuesta e Alberto Rodríguez. Trata-se de uma trama catástrofe, abordada em cinco perspectivas distintas, baseadas em uma hipótese assustadora: uma tempestade solar gera um blackout no sistema de fornecimento de energia do planeta, deixando o mundo sem luz elétrica, sem informática, sem esperança. O episódio dois, dedicado os efeitos dessa hecatombe sobre um hospital, é de abalar nervos. O projeto foi idealizado para a Moviestar e já se estima que sua narrativa viralize e vire um êxito popular.

"Apagón" e "Alcarràs" são parte de um processo de expansão global perpetrado pela Espanha, mesmo sob crises econômicas diversas, para difundir sua produção audiovisual planeta afora, consagrando nas plataformas de streaming, nas telas de TV e nas salas exibidoras (que já estão reabrindo) poemas em forma de séries ou filmes. Em 1999, com o sucesso internacional de "Tudo sobre minha mãe", que deu o Oscar a Pedro Almodóvar, as agências de exportação espanholas perceberam que cinema e televisão são, ainda, a maior diversão - hoje, inclua as plataformas de difusão digital nessa conta - e preparam uma série de projetos para fomentar a indústria cinematográfica e as grandes produtoras de conteúdo de TV de sua pátria. O resultado é uma produção que hoje domina Netflix, Amazon Prime, Globoplay e outras redes, contabilizando uma série de projetos de longas ou de seriados que angariam prêmios em todo o planeta, e mobilizam plateias GG, como vem fazendo "As Aventuras de Tadeo e a Tábua de Esmeralda", animação blockbuster importada de Madri.

Essa mesma indústria hoje abre champanhe para comemorar as conquistas de "Alcarràs". No passado, em 1978, quando a cineasta paulista Ana Carolina Teixeira Soares ("Mar de Rosas") foi do júri, o evento germânico deu seu troféu dourado a dois longas da pátria de Goya: "As Palavras de Max", de Emilio Martínez Lázaro, e "Las Truchas", de José Luis García Sánchez. O calor daquele momento era político, numa ressaca de franquismo, em dias em que Pedro Almodóvar começava a aparecer. O calor de agora, em que a suarenta paisagem catalã do longa de Carla ferve, é econômico, coroando a bonança midiática daquela país.

"Encontrei pessoas que se sentiram, momentaneamente, uma família, e lutei para reuni-las a partir do cinema", diz Carla, compartilhando uma triste descoberta sociopolítica. "Percebi durante o processo que as pequenas famílias de agricultores podem não ter muito futuro pela frente, pelos preços das frutas e pela especulação de grandes mercados".

Revelada à crítica com o cult "Verão 1993" (2017), Carla nos deslumbra em "Alcarràs" com o dia a dia dos Solé, um clã agricultor que vive da colheita de pêssegos. Nenhum de seus personagens é interpretado por atrizes ou atores com experiências profissionais. Todas e todos foram selecionados em festas populares, antes da pandemia. Após reuni-los, a diretora criou uma célula familiar que gira em torno dos pessegueiros e das brincadeiras de um divertido quarteto de criancinhas. Aquele agrupamento familiar é liderado pelo doce brucutu Quinet (Jordi Pujol Dolcet), que luta contra o abuso dos varejistas no valor pago aos rancheiros por frutos e contra a ocupação das terras ibéricas por painéis solares. "Existe um tom de crônica de uma morte anunciada", disse Carla à Berlinale. "O que vemos é a volta de uma tradição camponesa que envolve o cultivo da terra, mas tento retratar aquelas pessoas com esperança".