Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A glória é das estrelas

Fernanda Torres brilha como Eunice Paiva | Foto: Adrian Tejido/Divulgação

Esmagada por uma campanha de "cancelamento" deflagrada após o resgate de sua polêmicas postagens de cunho racista e xenófobo, a espanhola Karla Sofía Gascón vem sendo descartada de todas as especulações acerca da estrela a ser contemplada com o Oscar de Melhor Atriz no dia 2 de maço, diluindo inclusive as chances de seu longa-metragem, o musical francês "Emilia Pérez", ser consagrado como se esperava previamente. Nessa gangorra, as chances da carioca Fernanda Torres de vencer parecem ter aumentado, para alegria da torcida brasileira. A Vani do humorístico "Os Normais" encabeça uma das categorias a que "Ainda Estou Aqui" foi indicado na premiação anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A versão audiovisual do romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva, dirigida por Walter Salles, briga ainda pelos troféus de Melhor Filme e Melhor Filme de Língua Não Inglesa. Esta reportagem é parte de uma série de análises feitas pelo Correio da Manhã sobre possibilidade de vitória do sucesso de bilheteria de Waltinho, que beira 4,5 milhões de ingressos vendidos. Torres tem um obstáculo de peso chamado Demi Moore para tirar de seu caminho, representada pelo body horror "A Substância" ("The Substance").

Ambas nascidas na década de 1960, Demi (62 anos) e Fernanda (59) ganharam o Globo de Ouro no dia 5 de janeiro. A americana foi premiada no segmento Comédia/ Musical (onde o terror também é encaixado) e a brasileira ganhou na seara do drama. No Oscar, não existe tal divisão. As duas, que tiveram afetuosa conversa na láurea da Golden Globe Foundation, agora disputam num mesmo veio, onde, há 26 anos, a mãe de Torres, Fernanda Montenegro esteve em concurso por sua atuação como a escrevinhadora de cartas Dora, de "Central do Brasil".

Antes disso, há 39 anos, Torres atraiu holofotes estrangeiros ao ser premiada no Festival de Cannes pelo drama "Eu Sei Que Vou Te Amar" (1986), de Arnaldo Jabor (1940-2022). Ganhou num empate com a alemã Barbara Sukowa ("Rosa Luxemburgo"). Depois dali, foi contracenar com sir Anthony Hopkins em "Homem de Guerra", de Sergio Toledo, lançado em 1991. Em sua nação, participou de outros títulos marcantes, entre eles "O Que É Isso, Companheiro?", indicado ao Urso de Ouro... e ao Oscar... em 1998. Com Waltinho, filmou "Terra Estrangeira", de 1995 (hoje na Netflix), e "O Primeiro Dia" (1998), ambos codirigidos por Daniela Thomas. Esses dois longas alcançaram notabilidade em festivais de peso, como San Sebastián e Locarno. Foi em outra latitude das grandes mostras competitivas da indústria cinematográfica, o Festival de Veneza, que "Ainda Estou Aqui" iniciou sua carreira, em setembro, escalando Torres como a advogada e ativista Eunice Paiva (1929-2018). Fernandona interpreta Eunice também, em sua fase mais outonal, já famosa por suas batalhas jurídicas. A maior delas foi contra a ditadura.

Em 1971, o marido de Eunice, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (interpretado no filme por Selton Mello) foi retirado de casa, a mando de agentes armados, com a desculpa de prestar depoimento. Jamais regressou. Atrás do paradeiro dele, Eunice mudou-se para São Paulo, fez faculdade de Direto e usou o que aprendeu para fazer o Estado se explicar.

Quem vê Torres recriar as pelejas éticas de Eunice, sob a meticulosa direção de Salles, sai do cinema tocado (e pede bis). Protagonista de marcos do teatro ("A Casa dos Budas Ditosos") e da TV ("Os Normais" e "Tapas e Beijos"), bem-sucedida ainda no âmbito da prosa, em romances ("Fim" e "A Glória E Seu Cortejo de Horrores"), ela vem sendo elogiada em todos os festivais por onde a saga da Sra. Paiva passou, a partir de Veneza, onde o roteiro de Heitor Lorega e Murilo Hauser foi premiado.

O primeiro prêmio a fazer diferença na trajetória de "A Substância" também envolveu script. Foi o Melhor Roteiro do Festival de Cannes de 2024. Ali, Demi renasceu, sob os auspícios da cineasta francesa Coralie Fargeat. O longa pode ser visto hoje na MUBI, depois de ter faturado aos tubos nas salas de exibição. Custou US$ 17,5 milhões e já arrecadou US$ 76,5 milhões. Sua protagonista é a atriz e apresentadora Elisabeth Sparkle (Demi). Ao ser desligada da emissora onde brilhava num programa de aeróbica, a mando de um executivo de hábitos grotescos (Dennis Quaid, hilário), ela recebe um convite para provar de uma fórmula sintética capaz de rejuvenescê-la. Sem nada a perder, ela prova do tal líquido (injetável) e passa por uma dolorosa mutação que a torna uma moça bem jovem. Essa figura, vivida pela ótima Margaret Qualley (de "Stars At Noon" e da série "Maid"), ganha o nome de Sue. A exuberância em seu olhar e sua destreza na ginástica fazem dela uma diva midiática, tomando o posto que era de Sparkle. As duas deveriam ser uma só, mas acabam por desenvolver personalidades (e vontades) distintas, numa fratura de psique. É Médica e Monstra, Dra. Jekyll e Mrs. Hyde.

Essa rachadura é parte de uma contraindicação do tal soro: o certo era que elas trocassem de lugar, sempre, a cada sete dias, injetando-se novas doses. Se essa exigência de data não for cumprida, efeitos nefastos hão de ocorrer. O mais simples dele é o aumento da agonia no processo de morfismo delas. Há consequências mais graves como a escassez gradual da lucidez e a aparição de sequelas físicas, com marcas, pústulas e monstruosidades diversas.

Coprotagonista de "Ghost - Do Outro Lado Da Vida" (1990), com Patrick Swayze, Demi desafiou tabus em "Striptease" (1996) e já teve a Meca do cinemão das mãos, mas acabou sendo escanteada conforme avançava na idade, por novas primaveras. O viço que "A Substância" lhe garantiu é um convite a um debate sobre a mecânica do descarte na indústria do entretenimento. "Uma vez, disseram que eu era uma 'atriz de pipocas', só de filmes populares. Achava que já havia feito tudo o que tinha para fazer quando me chegou esse roteiro fora da caixinha", disse Demi, ao receber seu Globo dourado, no dia 5 de janeiro. Estima-se que o Oscar seja dela, ainda que Torres se imponha em sua trajetória, potencializada pela galopante arrecadação de "Ainda Estou Aqui" no exterior. Sua receita já beira US$ 25 milhões, algo raro para uma fita falada em português.

Na ordem da competição, outro nome de vigor é Cynthia Erivo, que solta o gogó em "Wicked". Ela é a única das cinco concorrentes que já foi indicada pela Academia no passado. Esteve em concurso em 2020, com o épico "Harriet". Sua performance desta vez é ainda mais luminosa, fora isso, a receita dessa fantasia cantada e dança nas bilheterias (US$ 723 milhões) assusta a concorrência. Pontuado por um discurso antirracista, esse espetáculo canoro pilotado pelo cineasta Jon M. Chu (um californiano de mãe taiwanesa e pai chinês) narra a saga da Bruxa do Oeste celebrizada em "O Mágico de Oz", na literatura e no clássico filme de 1939, com Judy Garland de Dorothy.

Aos 38 anos, Erivo esbanja carisma no papel de Elphaba, uma jovem estudante de magia incompreendida por conta de sua pele verde. Em sua formação nas artes mágicas, conhece Galinda (Ariana Grande), uma jovem popular, que a hostiliza de início, mas não tarda a se afeiçoar pela colega. Após um encontro com o Maravilhoso Mágico de Oz (Jeff Goldblum, impagável em cena), a amizade delas chega a uma encruzilhada. Nessa trajetória, a plateia se embevece com canções que anestesiam o peito, em coreografias que desafiam as leis da gravidade.

A quinta concorrente, Mikaela Madison Rosberg, de 25 anos, é a mais jovem desse certame e tem uma Palma de Ouro em seu currículo. Conhecida apenas como Mikey Madison, ela vive a personagem título de "Anora", que venceu Cannes numa celebração das estéticas indie dos EUA, coma grife do realizador Sean Baker. O selo de qualidade autoral que ele carrega há uma década, desde o sucesso de "Tangerina" (2015), vem não apenas de sua estética nevrálgica, de planos-sequência trepidantes, mas de sua recorrente imersão no dia a dia dos profissionais do sexo. Abordou a prostituição em "Projeto Flórida" (uma sensação da Quinzena de Cineastas de Cannes em 2017). Falou de um astro pornô em busca de emprego em "Red Rocket" (2021). Agora, seu novo longa-metragem, indicado à estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em seis categorias (inclusive a de Melhor Filme), faz de uma stripper de 23 anos, Anora Mikheeva (ou Ani para os íntimos... e clientes), sua força motriz. A responsabilidade é de Mikey.

Ela torna Ani uma figura tridimensional nos afetos, nas carências e na coragem de peitar machos escrotos. Graças ao talento dela, Baker rodou "Anora" com US$ 6 milhões. Escreveu, dirigiu e montou essa espécie de Cinderela sem sapatinho de cristal, que já faturou US$ 33,7 milhões nas bilheterias. Sua estreia no Brasil, expande os dividendos do longa na América Latina. Em sua cartografia da vida noturna do Brooklyn, a fita acompanha as doideiras que se passam com Ani depois que ela se envolve com o filho mucho louco de um oligarca russo, o moleque Ivan (Mark Eydelshteyn), que conhece no clube onde faz strip-tease. Um momento de conto de fadas se desenha para a moça quando Ivan propõe que eles se casem em Las Vegas. Quando a notícia desse matrimônio às cegas chega à Rússia, despertando a fúria da mãe de Ivan, sua ilusão de uma vida de luxo e riqueza é ameaçada. Em paralelo, um dos prestadores de serviço do ricaço eslavo, o segurança Ivan (Yura Borisov, indicado ao Oscar de coadjuvante), começa a se encantar por ela. Esse torvelinho de sexo, festas e decepções põe à prova todo o talento de Mikey, vista antes em "Era Uma Vez em... Hollywood" (2019) e "Pânico" (2022).

Resta saber qual dessas cinco estrelas (ou melhor, quatro, pois Karla Sofía parece ter sido preterida no papel de um traficante que transiciona e assume a identidade de Emilia) há de deixar o Dolby Theatre com o Oscar. O Brasil já tem sua eleita do coração.