Assumir a presidência do júri da 54ª Berlinale, que começa nesta quinta-feira (13), é uma forma de Todd Haynes, divo dos filmes indie, exorcizar o baque que sofreu em agosto de 2024, quando teve um projeto adiado, às vésperas de iniciar suas filmagens, em decorrência da perda de seu protagonista, Joaquin Phoenix. O astro recusou-se a seguir com o compromisso firmado com o realizador sem tornar públicas suas justificativas. Tomou bordoada de todo o lado pela opção de abandonar um longa - centrado numa paixão entre dois homens - que dependia de seu star quality para sair do papel.
Haynes acabou associado a uma nova empreitada, "Fever", a cinebiografia da cantora Peggy Lee (1920-2002), com Michelle Williams no papel central. Antes disso, tem 19 longas-metragens para avaliar na capital alemã, para decidir qual deles merece receber o Urso de Ouro. Entre os concorrentes, há o brasileiro "O Último Azul", de Gabriel Mascaro, distopia que se ambienta na Amazônia, com Denise Weinberg e Rodrigo Santoro no elenco.
Hoje com 64 anos, Haynes vai analisar candidato por candidato ao lado de um time de peso. Entre suas juradas e seus jurados, estão três cineastas (a alemã Maria Schrader, que também é atriz; o marroquino Nabil Ayouch; e o argentino Rodrigo Moreno); a figurinista Bina Daigeler, egressa de Munique; a crítica de cinema Amy Nicholson, do "Los Angeles Times"; e a estrela chinesa Fan Bingbing. Essa turma anuncia seu veredicto na Berlinale Palast no dia 22.
"O mestre alemão Rainer Werner Fassbinder dizia que um melodrama precisa de falsos finais felizes como forma de levar a plateia a entender o que se passa nos entornos da vida de suas personagens. Talvez por isso, o cinema que eu faço tenta mirar a sociedade e suas dinâmicas moralistas nas brechas em que a lente da câmera não está centrada nas protagonistas", disse Haynes ao Correio da Manhã, em entrevista na Espanha, quando lançava "Segredos de um Escândalo", hoje na Prime Video.
Em dezembro, esse drama devastador sobre desejos e projeções de identidade figurou numa das listas de maior prestígio do audiovisual: a enquete anual de 10 Mais da revista francesa "Cahiers du Cinéma". A equipe crítica do periódico elegeu "Segredos de um Escândalo" como o segundo melhor filme de 2024 - o n° 1 foi "Misericórdia", de Alain Giraudie. Estrelado por Natalie Portman e Julianne Moore, o longa concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro Original (escrito por Samy Burch e Alex Mechanik).
Presunções morais
"Foi Natalie que trouxe o enredo de 'Segredos de Um Escândalo' para mim, brigando por um roteiro que fala sobre o desconforto que as presunções morais trazem", explicou Haynes, num papo em que encheu de elogios o montador paulista Affonso Gonçalves, editor habitual de seus filmes e da minissérie "Mildred Pierce" (2011), também no ar na Prime Video. "Affonso é uma pedra fundamental na minha criação. Eu sou ruim de olhar o copião do que rodo, sobretudo quando ainda estou filmando, e entrego a ele a tarefa de me propor uma versão inicial do material bruto. Ele sempre me sai com ideias provocativas".
Foi Affonso quem montou "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, hoje candidato a três Oscars: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz (Fernanda Torres) e Melhor Filme. Ás da montagem, o editor contou ao "Correio da Manhã" que Haynes lhe oferece trocas profundas na concepção de seus trabalhos. Em "Segredos de um Escândalo", eles vão às profundezas da hipocrisia dos EUA.
Na Prime, é possível encontrar outros experimentos narrativos de Haynes pouco falados: "Sem Fôlego" (2017) e "O Preço da Verdade" (2019), que também está na Netflix. Sempre atenta ao realizador, a MUBI incluiu em sua grade o festejado "Carol" (2015), que rendeu a Rooney Mara o prêmio de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Cannes.
Quem inaugura a 54ª Berlinale é o alemão de Wuppertal Tom Tykwer, um dos diretores mais importantes para o redesenho da produção germânica na conversão do cinema analógico (em película 35mm) para o digital, na década de 1990. Os cults "Winter Sleepers - Inverno Quente" (1997) e "Corra, Lola, Corra" (indicado ao Leão de Ouro de 1998) fizeram sua fama. O novo exercício de sua autoralidade, "Das Licht" ("The Light" ou "A Luz"), passa hors-concours como atração de abre-alas do festival, apoiado no carisma de seu astro, Lars Eidinger (de "Dying"). No drama filmado por Tykwer, uma família se aboleta num apartamento na capital alemã. Embora as complexidades do dia a dia distanciem seus integrantes, eles vivem em harmonia, até que a enigmática Farrah (vivida por Tala Al-Deen), recém-chegada da Síria, é contratada como governanta. Com ela, o clã chefiado por Milena (Nicolette Krebitz) e Tim (Eidinger) terá novas lições de empatia.
A convocação de "Das Licht" assinala a nova linha curatorial da Berlinale, confiada à americana Tricia Tuttle, que vem do BFI London Film Festival. A gestão anterior, de Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, começou em 2020 (pré-pandemia) e terminou no ano passado. O saldo da dupla foi dos mais positivos, pois reaproximou o festival de grifes narrativas há muito afastadas como Martin Scorsese e Steven Spielberg, reconectando relações com Hollywood.