Nesta sexta-feira (7) será a derradeira exibição de "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles (nosso concorrente ao Oscar), no Festival de Roterdã, na Holanda, que encerra sua 54ª edição neste domingo com a certeza de ter inaugurado o garimpo anual das grandes mostras competitivas de cinema do planeta pelas raias da invenção. Fundado em 1972, o evento inaugurou seus trabalhos de 2025 no dia 30 de janeiro, com a exibição da comédia policial "Fabula", de Michiel ten Horn. Desde então, esforça-se para demarcar a pluralidade a partir da engenharia curatorial de sua diretora artística, Vanja Kaludjercic. Ela trouxe um bonde brasileiro para sua grade. Em uma de suas mostras, a Harbour, entrou o longa mineiro "Suçuarana", de Clarissa Campolina e Sérgio Borges. Com CEP em São Paulo, "Levante", de Lillah Halla, já lançado em circuito, leva um debate sobre fundamentalismo e luta feminista para a mostra Education. O Brasil emplacou ainda quatro curtas nas imediações dos Países Baixos: "Quem Se Move", de Stephanie Ricci; "Tragédia", de Bernardo Zanotta; "Bisagras", de Luis Arnías; e "Fale a Ela o Que Me Aconteceu", de Pethrus Tibúrcio. Salles, como esperado, comoveu plateias ao reviver a luta de Eunice Paiva (1929-2018), advogada e ativista que peitou o governo militar nos anos 1970.
Pela proximidade com a cerimônia anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (a deste ano será no dia 2 de março), Roterdã sempre abre espaço para oscarizáveis em potencial. É o caso do blockbuster de Salles, com Fernanda Torres. O flerte com a estatueta dos EUA se materializa ainda nas projeções do esperado "O Brutalista" ("The Brutalist"), neste sábado.
O ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme de Drama vem se notabilizando por sua radical engenharia visual (fotografada em 70mm). Seu realizador, Brady Corbet, é o favorito entre oscarizáveis de 2025, na categoria Direção. Trata-se de um esplendoroso painel histórico (de 3h e meia) sobre o calvário de um arquiteto húngaro (Adrien Brody) na América do pós-Guerra, sob os auspícios de um milionário excêntrico (Guy Pearce). Estreia no Brasil no dia 20.
O Correio da Manhã elenca a seguir algumas das principais descobertas do evento, que foi essencial para a consolidação de vozes autorais latinas. Dois marcos da pluralíssima estética pernambucana - "Baixio das Bestas", de Claudio Assis, e "O Som Ao Redor", de Kleber Mendonça Filho - foram premiados em Roterdã em edições passadas (2007 e 2012, respectivamente) da maratona cinéfila. Ela integra o time dos sete festivais que mobilizam os motores da autoralidade em escopo internacional. Abre um circuito competitivo que segue com Berlim (fevereiro); Cannes (maio); Locarno (agosto); e a trinca Veneza, Toronto e San Sebastián, em setembro. Sudance, realizado em janeiro, só que nos EUA, em Park City, Utah, teve já um prestígio similar ao desse G7, mas perdeu muito de seu viço. Caiu de fama mesmo nos Estados Unidos, onde vem sendo ofuscado pelo SXSW (em Austin), por Telluride (no Colorado) e por Tribeca (em Nova York).
Roterdã, pelo contrário, só faz crescer em relevância. Confira a seguir os motivos de sua potência nessa seleção de joias reveladas por suas programação.
¡CAIGAN LAS ROSAS BLANCAS!, de Albertina Carri (Argentina): O novo longa da diretora de "As Filhas do Fogo" (2018) tem o Brasil entre seus produtores. Na trama, Violeta (Carolina Alamino) fez um sucesso estrondoso com seu filme pornô lésbico amador, mas muito inventivo. Como resultado, ela foi contratada para escrever e dirigir uma versão um tanto mais convencional de seu cult. Suas opiniões sobre gênero e sobre cinema não se encaixam muito bem no ambiente mais profissional da produção audiovisual. Na vivência da inadequação, ela decide filmar com liberdade plena, numa viagem de carro, do sul de Buenos Aires a São Paulo.
ORENDA, de Pirjo Honkasalo (Finlândia): Conterrânea do mítico Aki Kaurismäki, a diretora de "A Engolidora de Fogo" (1998) e "Noite Decisiva" (2013) encerra um hiato de doze anos sem lançar longas com este tocante drama. No enredo, Nora (Alma Pöysti, de "Folhas de Outono") é uma cantora de ópera cujo sucesso criativo a deixou despreparada para perdas. A morte de seu marido a devasta. Solitária, ela precisa fazer valer o desejo dele de ser enterrado numa ilha com um farol. Nesse local isolado, ela cruza com Natalia, uma sacerdotisa em crise com a fé. Aos poucos, as duas criam uma conexão que veda os buracos existenciais.
RAPTURES ("Rörelser"), de Jon Blahed (Suécia): Uma das narrativas mais elogiadas do festival deste ano pela pujança de sua montagem e pelo vigor de seu elenco. Em uma região remota do norte da Suécia, na década de 1930, Rakel (Jessica Grabowsky) vive com seu marido Teodor (Jakob Öhrman). Ela é uma cristã devota que fica inquieta quando Teodor decide formar seu próprio culto. A inquietação logo se transforma em desconfiança e medo quando a visão de mundo do marido começa a se tornar extrema, compartilhando visões de um apocalipse iminente. Questões sexuais levantadas na prática de reza do marido põem em xeque os códigos morais de Rakel, nesta adaptação de um romance publicado em 1988 por Bengt Pohjanen.
THE GREAT NORTH, de Jenn Nkiru (Reino Unido): Experimento narrativa da artista visual anglo-nigeriana que trabalhou os videoclipes "Brown Skin Girl" e "APESHIT" para Beyoncé e Jay-Z. Sua investigação sobre diásporas negras traça conexões entre povos, cidades, países, edifícios, movimentos, corpos e espaços usando uma mistura de materiais de arquivo e registros documentais da Manchester do presente.
BAD PAINTER, de Albert Oehlen (Alemanha): Associado a correntes neoexpressionistas e ao abstracionismo em sua relação com a pintura, o realizador deste ensaio "autogeográfico" já havia se arriscado pelo cinema antes no filme "Yellow", de 2024, como roteirista e produtor. Ataca na direção agora, discutindo desejo a partir de seu processo de criação. Escala um ator, Udo Kier (de "Bacurau") para interpretá-lo e põe a atriz Kim Gordon como sua entrevistadora.
PAI NOSSO - OS ÚLTIMOS DIAS DE SALAZAR, de José Filipe Costa (Portugal): Num exercício de sutileza, o diretor do crocante "Prazer, Camaradas!" (2019) se embrenha pela ficção a fim de narrar o calvário do líder luso António de Oliveira Salazar (1889-1970), com Jorge Mota no papel do estadista. Existe sátira no engenho dramatúrgico do roteiro escrito pelo cineasta com Letícia Simões e Daniel Tavares, numa reconstituição dos delírios salazaristas na reta final de sua vida, já distante do Poder.
LA CHAMBRE DE MARIANA, de Emmanuel Finkiel (França): Mélanie Thierry (de "Teorema Zero") se firma como uma das grandes atrizes a serviço da língua francesa hoje. Retoma sua parceria com o realizador de "Memórias da Dor" (2017) para reviver os dias mais sombrios da Segunda Guerra Mundial. Em meio à violência nazista, os judeus Yulia (Julia Goldberg) e Hugo (Artem Kyryk), mãe e filho, escapam de um gueto ucraniano. Temendo por sua segurança, Yulia confia seu rebento aos cuidados de uma amiga, Mariana (papel de Mélanie), uma profissional do sexo que vive em um bordel, onde o guri vai tomar contato com a aspereza da vida.