Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O Demolidor do DF

Fernando Teixeira foi premiado por seu desempenho no longa 'Capitão Astúcia', uma produção brasiliense sobre um vovô super-herói que tem como missão dar cabo de um vilão que representa uma ameaça a seu neto | Foto: Divulgação

Vai ter Marvel nas telas daqui a dez dias, com a luta entre o Falcão Sam Wilson (Anthony Mackie) e o Hulk Vermelho (Harrison Ford) em "Capitão América: Admirável Mundo Novo", mas, antes disso, um outro super-herói, brasileiríssimo, egresso lá do Distrito Federal, promete combater o Mal (e as chatices da vida) no circuito exibidor.

Com estreia marcada para quinta, "Capitão Astúcia" chega às telas com 49 prêmios no currículo e bom humor a rodo. Vem lá do Centro-Oeste, de terras que produziram grifes autorais de prestígio, como Cibele Amaral ("Momento Trágico"), Renê Sampaio ("Eduardo e Mônica") e José Eduardo Belmonte ("Subterrâneos"). Filipe Gontijo, diretor de "A Gruta" (2008), é seu realizador e consegue conversar (bem) com as cartilhas pop de tramas sobre vigilantes mascarados, mesmo mirando nas endemias morais e sociais do Brasil - em especial os desrespeitos com idosos.

Faz tempo que Brasília impressiona olhares ao flertar com narrativas de gênero. No perímetro do audiovisual, aquele território costuma ser mais conhecido por seu histórico documental, em especial pela obra de Vladimir Carvalho (1935-2024), um paraibano radicado lá, e famoso por cults como "Barra 68" (2001). No entanto, existem outros veios em sua produção de curtas e de longas.

Não por acaso, a capital federal desta nação fez investimentos até na ficção científica (um filão raríssimo na filmografia latino-americana), com "A Repartição do Tempo" (2016), de Santiago Dellape. Por lá existe ainda uma usina de thrillers de ação à moda Charles Bronson, dirigidos por Erik de Castro: "Federal" (2010), "Cano Serrado" (2018) e "Amado" (pilotado em dupla com Edu Felistoque em 2022).

Assim sendo, o investimento daquele polo em representar o vigilantismo (tal qual o tema é tratado pelas HQs) não chega a ser uma surpresa. Surpreende, sim, a notável destreza narrativa de Gontijo e sua contundência no debate do etarismo.

Seu protagonista, Fernando Teixeira (conhecido por "Baixio das Bestas" e "Aquarius"), tem uma atuação em estado de graça, que foi coroada com o troféu de Melhor Interpretação no Festival de Vassouras, em 2023. Amparado numa direção de arte esplendorosa (de Lia Renha) capaz de tratar a realidade de populações anciãs com um desfile de cores, Gontijo faz de "Capitão Astúcia" uma cartografia do desamparo na terceira idade. Analisa ainda o papel da fantasia no combate ao desdém e ao abandono de quem é definido pela palavra "velho".

O roteiro escrito por Gontijo e Eduardo Gomes abre brechas para a aventura, regando sua estrutura de adrenalina. No enredo, o músico Santiago (Paulo Verlings) vive frustrado com sua carreira de pianista, assombrado pela fama que teve quando usava calças curtas. Era chamado de Kid Pianino quando pequeno, por ser um prodígio em Bach, e é obrigado pelo pai a assumir essa alcunha de novo, agora adulto, num programa de variedades da TV. Obstinado em escapar de um revival na televisão, o rapaz se refugia no universo quixotesco de um avô que há tempos não via. Esse vozão cheio de afeto é um figuraça. O problema desse senhor - outrora ligado à indústria das revistas em quadrinhos, num trabalho como letreirista - é acreditar que é um combatente do crime. Encara a si mesmo como se fosse um Batman brasiliense ou um Demolidor candango. Defender os fracos e os oprimidos sob o alter ego do Capitão Astúcia passa a ser a sua razão de viver, apoiado pelo carinho de uma amiga (e até algo mais), Dulce, que arranca da atriz Nívea Maria (uma diva das telenovelas) um poético desempenho.

Astúcia tem até um inimigo, um Lex Luthor particular chamado Akira Laser (vivido por Yudi Tamashiro). Esse malvadão é um pianista demoníaco que utiliza raios em suas apresentações para acessar dimensões paralelas. A tarefa de Astúcia será dar cabo dele. O dilema é como fazer isso num país que sucateia sua população anciã.

Premiado em festivais na Espanha, na Itália e nos EUA, "Capitão Astúcia" se impõe na telona - sem fazer vergonha frente à concorrência marvete - pela direção de fotografia de André Carvalheira, numa luz que evoca o colorido dionisíaco das graphic novels.