Em seu empenho semanal de formação de plateias, a sessão Classiquíssimos do Grupo Estação faz da telona do Net Gávea, nesta quarta, às 21h, um espaço de reverência para o maior pilar do feminismo no audiovisual, a diretora belga Agnès Varda (1928-2019), com a projeção de seu primeiro longa-metragem, "La Pointe Courte". Recentes revisões históricas sugerem que esse drama amoroso seja o pavimento inicial da Nouvelle Vague, o movimento responsável por modernizar (não só tecnicamente como também na reflexão filosófica) a criação do discurso audiovisual, no fim dos anos 1950. Em sua trama, um casal em crise retorna para o pequeno vilarejo de Pointe Courte, no qual Lui, o marido (vivido por Philippe Noiret), viveu sua infância. Regressar ao berço pode ser um meio de reaver o carinho de sua parceira, Elle (Silvia Monfort). No local, os dois vivem momentos de reflexão sobre seu relacionamento, ao mesmo tempo em que o cotidiano dos moradores flui ao seu redor. É uma cartografia de vivências feita sob uma ótica que o cinema desconhecia até então. Ali, o vulcão Varda entrou em erupção, gerando joias como "O Amor dos Leões" (1969), que chega agora à grade da MUBI.
Neste momento em a falta de equidade salarial entre gêneros, oriunda do sexismo, torna-se uma das pautas centrais do cinema, dentro e fora das telas, Agnès segue eterna, como um farol para iluminar novas estratégias de afirmação das potências femininas. Ela saiu de cena há seis anos, após uma batalha contra um câncer no seio. Morreu um mês depois de lançar seu último longa, o ensaio documental "Varda por Agnès" (2019) no Festival de Berlim, numa cerimônia onde conquistou o troféu honorário Berlinale Camera pelo conjunto de sua obra.
Esse canto de cisne dela pode ser visto hoje no streaming Reserva Imovision, assim como "Cléo das 5 às 7" (1962), a ficção mais famosa de sua prolífica obra, composta por 60 títulos.
"Parecia uma maluquice uma garota que nem tinha visto tantos filmes assim se propor a abrir um debate estético numa França onde as vozes masculinas eram preponderantes nos sets, só que eu tinha a ingenuidade e a bravura para fazê-lo", disse Agnès na Berlinale.
Morreu aos 90 anos, lutando de modo sereno contra seu tumor, sem abrir mão do trabalho. Pioneira da modernização política e narrativa da produção audiovisual, a diretora de "As duas Faces da Felicidade" (Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e "Os Renegados" (Leão de Ouro em Veneza, em 1985) nasceu Arlette Varda, mas mudou legalmente seu nome aos 18 anos. Ela tinha em seu currículo um Oscar honorário e uma Palma de Ouro de Honra ao Mérito. Ganhou notoriedade numa época revolucionária, na qual ela foi casada com o mestre europeu dos musicais Jacques Demy (1931-1990), realizador de "Os Guarda-Chuvas Do Amor" (Palma de Ouro de 1964). Viveu com ele de 1962 até a morte do diretor, com quem teve um filho, o ator Mathieu Demy, hoje com 46 anos. Antes dele, numa relação com o ator Antoine Bourseiller (1930-2013), teve uma filha, Rosalie Varda, uma aclamada figurinista, que, nos últimos anos, trabalhou como produtora de Agnès.
"Minha mãe passou os últimos 15 anos dedicada às artes visuais, explorando um formato de instalação em vídeo. Pouca gente conhece a fundo o que ela fez nesse período. Assim como poucos jovens de hoje conhecem os filmes que Demy rodou. O legado deles precisa seguir adiante e ser prestigiado pelas novas gerações", disse Rosalie ao CORREIO DA MANHÃ em recente entrevista em Paris.
Dois cults da filmografia da cineasta, "Jane B. pela Agnès V." (1988) e "Os Panteras Negras" (1968) estão disponíveis para locação ou compra na Amazon Prime, traduzindo em seus enquadramentos um dos dogmas de Varda: "A vida ganha um novo tom quando vista por uma câmera".