Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / FILME / A VERDADEIRA DOR: Dramaturgia do inesperado

Jesse Eisenberg e Kieran Culkin inbterpretam os primos David e Benji Kaplan em A Verdadeira Dor' | Foto: Searchlight Pictures

Frases de para-choque de caminhão tipo "Primos são aqueles irmãos que nasceram na barriga dos nossos tios" dão a medida de afeto que impulsiona David e Benji, parentes consanguíneos do clã Kaplan, por uma jornada a um perímetro da Polônia assombrado por fantasmas nazistas.

Em sua Nova York natal, David casou, virou pai, alcançou estabilidade (e lucro) profissional e se dedica ao ideal de fazer a instituição "família" funcionar com harmonia. Já Benji, ao contrário dele, é pipa voada. Não tem lastro, erra pelo mundo e amortece os solavancos da vida com fármacos de todo tipo. A dupla segue por trilhas opostas em suas escolhas, ligada por códigos culturais judaicos. Lá atrás, entretanto, quando eram meninos, eles viviam como unha e carne, na brodagem plena.

É em nome desse carinho do passado que o bom moço dos Kaplan aceita acompanhar seu familiar com defeito num acerto de contas simbólico com suas raízes - e com a foice hitlerista que as condenaram a campos de concentração, nos anos 1940. Assume essa missão não apenas para repensar a resiliência histórica do povo judeu, mas para resgatar o menininho gente fina que ainda pode viver na carcaça sincerona de David. O fato de ele ter tentado suicídio é um motivo a mais para a viagem que pavimenta o belíssimo "A Verdadeira Dor" ("A Real Pain"), que faz do ator Jesse Eisenberg um cineasta elegante.

É ele quem interpreta David, além de dirigir e de assinar o roteiro, merecidamente indicado ao Oscar. A seu lado, no papel de Benji, existe uma força da natureza, Kieran Culkin, ganhador do Globo de Ouro de Melhor Coadjuvante. Ele também concorre no páreo da Academia de Artes e Ciências Cinematográfica de Hollywood, na mesma categoria, despontando como favorito. Seu prestígio na TV e no streaming na série "Succession" (da plataforma MAX), em que vive Roman Roy, foi fundamental para que Eisenberg conseguisse mais visibilidade para o longa-metragem. Kieran - que ganhou um Emmy em 2023 pelo supracitado do seriado da antiga HBO - é o irmão (dois anos) mais moço de Macaulay Culkin, o Kevin de "Esqueceram de Mim" (1990). Seu jeito de injetar agressividade a frases corriqueiras, numa fronteira estreitíssima entre riso e drama, dá à narrativa de "A Verdadeira Dor" uma carga de tensão, numa dramaturgia do inesperado.

Catapultado à fama em "A Lula e a Baleia", de Noah Baumbach, há 20 anos, Eisenberg ganhou status de astro (daqueles inquietos) ao estrelar "A Rede Social" (2010), sucesso comercial de David Fincher, que o levou a concorrer ao Oscar. Perdeu para Colin Firth, em "O Discurso do Rei", mas consagrou uma forma de interpretação de falar e fazer gestos nevralgicamente. Levou esse estilo até para a animação, ao emprestar a voz para a ararinha azul de "Rio", do carioca Carlos Saldanha, que o trouxe à Copacabana em 2011. Enquanto flertava com o cinemão, interpretando o Lex Luthor da safra de longas de Zack Snyder baseados nas HQs da DC Comics, ele cedeu seu talento à produção independente dos EUA e da Europa, filmando com Kelly Reichardt ("Movimentos Noturnos"), Joachim Trier ("Mais Forte Que Bombas"), Lorcan Finnegan ("Viveiro") e John Trengove ("Manodrome", uma joia, hoje na Amazon Prime). Atento a artesões autorais, emprestou seu humor tenso a Woody Allen duas vezes, em "Para Roma Com Amor" (2012) e "Café Society", que abriu o Festival de Cannes em 2016.

Experiências assim o levaram a se arriscar como cineasta pela primeira vez em 2012, rodando "Quando Você Terminar de Salvar o Mundo", com Julianne Moore, já atento ao ônus que existe nas conexões de parentesco. Aproveitou parte do que experimentou ali em "A Verdadeira Dor", cuja gênese está no conto "Mongolia", que escreveu em 2017 para a revista online "Tablet". Na tal historieta, ele escreveu sobre dois amigos que viajam pelo mundo ajustando as diferenças. Decidiu dar uma nova chance a esse enfoque on the road, com outros personagens, discutindo a fraternidade que há entre dois parentes há muito afastados. Assim nasceu "A Verdadeira Dor", rodado ao custo de US$ 3 milhões.

Seu faturamento hoje arranha US$ 11 milhões. Seu rol de vitórias soma 46 láureas, entre elas o Prêmio Waldo Salt de Roteiro no Festival de Sundance. Amparado pelos planos estáticos (e de colorido retinto) da direção de fotografia de Michael Dymek, Eisenberg tem a chance de afinar seu ferramental cênico e fomentar em Culkin uma fúria que detona na telona, em diálogos afiados. Com enquadramentos rigorosamente lapidados (à altura dos olhos das suas personagens), ele constrói uma comédia dramática convulsiva sobre a reconexão de David e Benji conforme os dois seguem uma rota turística ligada ao Holocausto. Não parece a mais amena das propostas para um reencontro, mas existe uma urgência por trás, uma vez que o personagem de Kieran dá sinais de descontrole em sua rudeza incontinente. O que brota da convivência deles é o estudo da tolerância.