No páreo do Oscar, Torres concorre ainda com Cynthia Erivo ("Wicked"), Karla Sofía Gascón ("Emilia Pérez") e Mikey Madison ("Anora"), mas a carioca pode ampliar sua visibilidade nesse certame com o êxito comercial de "Ainda Estou Aqui" no exterior, cuja receita hoje beira US$ 15 milhões. A ampliação de seu circuito exibidor nos Estados Unidos, a partir da semana que vem (dia 7), há de expandir seu faturamento global. Foi o que aconteceu com "Central do Brasil" (Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1998), rodado por Walter e também indicado ao Oscar, há 26 anos.
Nesse cult sobre uma escrevedora de cartas, o diretor escalou como estrela a mãe de Torres, a diva Fernanda Montenegro, que divide com a filha o papel principal de seu atual blockbuster, a advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018).
Durante os Anos de Chumbo, no começo da década de 1970, Eunice (mãe de Marcelo) teve seu marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens (papel de Selton Mello), levado para depor, mas ele nunca regressou. Dali para diante, ela se empenha em dissipar as névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos "subversivos", numa trajetória heroica de combate nas vias da Lei.
Quem vê Fernanda Torres recriar as batalhas de Eunice sai do cinema tocado (e pede bis). Protagonista de marcos do nosso teatro ("A Casa dos Budas Ditosos") e de nossa TV ("Os Normais", "Tapas e Beijos"), bem-sucedida ainda na prosa, como autora de romances ("Fim" e "A Glória E Seu Cortejo de Horrores"), ela vem arrebatando novos fãs desde a primeira projeção do longa, em setembro, no Festival de Veneza. Na terra das gôndolas, a produção ganhou o prêmio de Melhor Roteiro, dado a Heitor Lorega e Murilo Hauser.
Depois, "Ainda Estou Aqui" brilhou em projeções em San Sebastián, Nova York, Toronto e Marrakech, além da Mostra de São Paulo, onde ganhou o Prêmio de Júri Popular. No primeiro fim de semana de janeiro, a Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ) elegeu a narrativa de Salles para o pódio do Top Ten de 2024, dando a ele o título de Filme do Ano.
Passados 39 anos de sua vitória no Festival de Cannes por "Eu Sei Que Vou Te Amar" (1986), onde ganhou o prêmio de Melhor Interpretação, Torres é o coração dessa radiografia do Brasil dos tempos da ditadura. Na entrevista a seguir, ela faz um balanço sobre o simbolismo das pelejas éticas de Eunice e relembra a parceria com Walter, que começou em 1995, em "Terra Estrangeira" (hoje na Netflix), filmado por ele em duo com Daniela Thomas.
De "Terra Estrangeira" até "Ainda Estou Aqui", o que mudou e o que mais se afinou no seu modo de trabalhar com Walter Salles, com quem você filmou ainda "O Primeiro Dia", de 1998? Que rituais, métodos, anedotas se formaram na relação entre vocês?
Fernanda Torres: Eu acho que no "Terra Estrangeira" foi onde o Walter descobriu que diretor ele era. Foi super bonito ver o filme ser dirigido por ele e pela Daniela (Thomas). Muitas coisas que ele aprendeu no "Terra" ele levou depois consigo, como chamar a equipe para perto. Uma equipe pequena e ágil. Ele trouxe a Daniela do teatro para entender o processo com o ator. O roteiro foi meio experimentado com os atores lendo, uma coisa que ele levou para a vida. Tinha a questão de deixar que todo mundo ali naquela pequena equipe fosse quase um coautor com ele. Ele sabe muito bem o que quer, mas é muito aberto à visão de todo mundo em volta. Por exemplo, no "Ainda Estou Aqui", ele ouvia muito a Laura (Zimmermann) do som, o Carlos Conti (da direção de arte), o Lula Serrillo (operador de câmera), o Adrian Teijido (diretor de fotografia). Uma coisa que ele já fazia na época do "Terra" é que ele dá as indicações no ouvido do ator baixinho, sem que outros saibam. Não sei se na época ele já tinha isso tão formatado na cabeça. Ele pede ao ator às vezes para trocar uma pequena coisa - seja uma palavra ou uma ação - de forma que cada take seja um take e não uma tentativa de repetir a primeira (tomada) melhor. O documentarista que ele é - e que ele levou para o cinema na vida - estava no "Terra Estrangeira" e está até hoje lá. O que ele ganhou no "Ainda Estou Aqui" foi uma maturidade imensa na percepção de tudo que é supérfluo. Saca o que precisa ser cuspido fora tanto da cena quanto do cenário, do figurino, da música. O "Ainda Estou Aqui" é um filme essencial, não tem um truque. Isso é uma coisa que a maturidade trouxe a ele.
O que a Eunice ainda te ensina sobre o Brasil, neste momento de promoção e de consagração do filme no mundo?
Eunice Paiva é um guia para o mundo moderno, uma mulher que viveu num período distópico do mundo, durante a Guerra Fria. Sua família foi vítima da Guerra Fria, que apoiou as ditaduras militares da América Latina, num período em que ela e a família foram taxadas de comunista, de guerrilheira. Ela perdeu não só o Rubens como a identidade da família dela na sociedade. Foi uma coisa muito séria, mas soube ter calma, soube confiar na justiça, no tempo. Eunice soube manter a alegria de viver e confiou na Educação. Formou-se como advogada e foi, através da Lei, lutar pelos direitos humanos. Ela é um guia para aquela época e para hoje, sem dúvida.
Você virou uma escritora de prestígio, adaptada para o audiovisual inclusive (vide a minissérie "Fim", talhando uma forma de escrita muito particular. Como é que você, na condição de autora, lê um texto hoje, sobretudo uma adaptação literária como é o caso de "Ainda Estou Aqui"?
Como escritora, aprendi muito com a minha experiência de atriz. Aprendi como entrar no personagem, como me deixar levar por ele, como respeitar. Às vezes, o personagem quer fazer algo, mas você acha que ele deveria fazer outra coisa. Acredito que eu escrevo diálogo bem. Entendi que o diálogo não pode ser uma repetição da ação. O diálogo tem que se contrapor à ação. Mas isso é atriz que eu sou falando. Você vê se o personagem está falando algo que vá contribuir para ação ou se ele está apenas dizendo estar triste ou a que lugar está indo. Quando o personagem abre a boca, tem que falar algo que te surpreenda. Nisso, Tarantino nos ensina muito. No caso do "Ainda Estou Aqui", fui só alegria no roteiro, porque fiquei muito impressionada com a capacidade que (os roteiristas) Murilo (Hauser) e Heitor (Lorega) tiveram para escolher, naquele livro imenso do Marcelo, um corte que pula 26 anos e depois pula mais dez. É muito difícil. O trabalho da gente foi, principalmente, ajustar a Eunice na passagem da primeira fase para a segunda, para que a segunda tivesse uma razão de existir. Acho que o trecho mais difícil de acertar - que foi para lá, foi para cá, teve mil retornos - foi a segunda parte, ali em São Paulo, onde ela recebe o atestado de óbito do Rubens.
Teus livros já começaram a ganhar novas traduções de carona no sucesso do filme?
Os meus livros cumprem a vida deles. Está tão louco lançar o "Ainda Estou Aqui", num trabalho tão grande, que estou deixando eles irem por eles.