Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Sean Baker: 'Esperança gera idealismo'

O cineasta Sean Baker, de 'Anora' - adversário de 'Ainda Estou Aqui' em duas categorias do Oscar - fala ao Correio sobre dar voz às pessoas que vivem à margem do chamado sonho americano | Foto: Divulgação

Atestado audiovisual da saúde criativa do cinema independente americano, "Anora" lançou sua candidatura ao Oscar assim que conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2024, em maio, coroando a autoralidade de seu realizador, Sean Baker. O selo de qualidade autoral que carrega há uma década, desde o sucesso de "Tangerina" (2015), vem não apenas de sua estética nevrálgica, de planos-sequência trepidantes, mas de sua recorrente imersão no dia a dia dos profissionais do sexo. Abordou a prostituição em "Projeto Flórida" (uma sensação da Quinzena de Cineastas de Cannes em 2017). Falou de um astro pornô em busca de emprego em "Red Rocket" (2021).

Agora, seu novo longa-metragem, indicado à estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em seis categorias (inclusive a de Melhor Filme), faz de uma stripper de 23 anos, Anora Mikheeva (ou Ani para os íntimos... e clientes), sua personagem central. A atuação de Mikey Madison torna Ani uma figura tridimensional nos afetos, nas carências e na coragem de peitar machos escrotos. Não por acaso, ela é uma das concorrentes mais fortes da carioca Fernanda Torres (indicada por "Ainda Estou Aqui") ao troféu de Melhor Atriz na caça à estatueta dourada mais cobiçada da indústria cinematográfica.

Nascido em Nova Jersey, há 53 anos, Baker sabe filmar com pouco dinheiro, como todo artista indie do bom. Rodou "Anora" com US$ 6 milhões. Escreveu, dirigiu e montou essa espécie de Cinderela sem sapatinho de cristal, que já faturou US$ 33,7 milhões nas bilheterias. Sua estreia no Brasil, no último fim de semana, expande os dividendos do longa na América Latina. Com o anúncio das nomeações ao Oscar, sua receita há de crescer, assim como o prestígio de Baker. Ele está indicado aos prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Montagem (ao qual dispara como o favorito) e Melhor Direção. Nesse quesito compete com os franceses Jacques Audiard ("Emilia Pérez") e Coralie Fargeat ("A Substância") e com os americanos James Mangold ("Um Completo Desconhecido") e Brady Corbet ("O Brutalista").

Sua precisão na condução de Mikey nos sets é notável, assim como seu diálogo com cânones do humor. "Fui conversar com as tramas românticas do cinema dos anos 1980 extraindo delas o que têm de mais cômico", disse o realizador numa entrevista Zoom organizada pela Golden Globe Foundation, na qual falou com o Correio da Manhã.

Em sua cartografia da vida noturna do Brooklyn, ele acompanha as doideiras que se passam com Ani depois que ela se envolve com o filho mucho louco de um oligarca russo, o moleque Ivan (Mark Eydelshteyn), que conhece no clube onde faz strip-tease. Um momento de conto de fadas se desenha para a moça quando Ivan propõe que eles se casem em Las Vegas. Quando a notícia desse matrimônio às cegas chega à Rússia, despertando a fúria da mãe de Ivan, sua ilusão de uma vida de luxo e riqueza é ameaçada. Em paralelo, um dos prestadores de serviço do ricaço eslavo, o segurança Ivan (Yura Borisov, indicado ao Oscar de coadjuvante), começa a se encantar por ela. Esse torvelinho de sexo, festas e decepções põe à prova todo o talento de Baker, que explica sua forma de fazer dramédia no papo a seguir.

O que a solidão de Ani reflete sobre a juventude contemporânea?

Sean Baker: O cinema que eu faço trata de pessoas marginalizadas, que estão nas franjas da sociedade, vetadas da busca pelo chamado "sonho americano". Ani é uma dessas figuras, mas não sei se a vejo como uma pessoa solitária, pois ela tem amigos, tem a irmã. O que sinto nela é um potencial enorme para amar. Em alguma medida, parece haver um amor dela por Ivan. Ela tem esperança. Isso é fato. Esperança gera idealismo.

Existe uma mirada política prévia na abordagem de "Anora" seja para o ofício das strippers, seja o da imigração russa?

Na ficção, quando se formata uma narrativa sob a mediação de uma perspectiva sociológica, a gente incorre no risco de cair na pregação, de ficar fazendo palestra. Num filme documental, eu posso me abrir a essa reflexão social na base. No caso do entretenimento, se eu entro numas de pregar, eu perco a plateia. O eixo de "Anora" vem das convenções da screwball comedy (uma comédia de situações, com viradas inusitadas, quase sempre ligada a guerra dos sexos, desnudando o machismo), empregadas no esforço de entendermos a cabeça de uma jovem. Nos últimos anos, no cinema, as plateias se acostumaram a só ver franquias. Os estudos de personagem, inerentes ao filão da dramédia, parecem um prazer distante. Fui atrás desse prazer. Meus filmes, em geral, têm momentos de humor. Neste, a risada é maior.

O que mais te fascina no universo dos "trabalhadores do sexo"?

Durante a imersão que fiz no contexto social de trabalho a que Ani pertence, não ouvia relatos extraordinários sobre lascívia ou violência, mas sim desabafos de gente que tinha de correr para casa para estender a roupa no varal. É o tipo de depoimento que humaniza, que gera identificação. Eram relatos de gente preocupada em não deixar a roupa cheirando mau por estar pendurada na corda por tempo demais. Isso aproxima, mostra que somos gente. Nunca entrei nesse universo buscando glamour e saí dele com novas amizades.

A indicação de "Anora" ao Oscar de melhor montagem consagra o seu trabalho como editor de imagens. Você segue algum método de montagem específico?

Depois que todo o roteiro de um projeto meu é filmado, eu tiro qualquer detalhe de produção de perto. Conto com a parceria da minha mulher (a produtora Samantha Quan) nessa seara. Nesse momento, eu me distancio radicalmente do que filmei, por meses, para dar tempo de me dissociar do que rodei. Aí, quando finalmente vou para a ilha de edição, tenho como encarar o material filmado como se fosse um documentarista olhando imagens do real. Eu monto sempre em ordem cronológica, respeitando a ordem a trama, para entender o ritmo.

 

CRÍTICA / FILME / ANORA: Boa combinação de conto de fada com comédia física

Anora | Foto: Divulgação

Assim que começa o romance entre Ani e Vanya, a plateia já sabe: apesar do parentesco com os contos de fada, a história tem pouca chance de acabar bem. Em "Anora", longa de Sean Baker que venceu a Palma de Ouro em Cannes, Ani, vivida por Mikey Madison, trabalha como stripper de uma boate de Manhattan e é escalada para atender Vanya (Mark Eydelsteyn), milionário russo recém-saído da puberdade.

O garoto mora em uma mansão, num condomínio fechado, mas vive solto em Nova York, numa rotina que alterna festas, bebidas, drogas e videogame. Ela vive no subúrbio, e como aprendeu um pouco de russo com a avó, nascida na antiga União Soviética, consegue trocar algumas palavras na língua materna de Vanya, o que contribui para derreter seu coração.

As habilidades sexuais da gata arrebatam o ricaço: ele paga US$ 15.000 para a ter com exclusividade por uma semana. Nesse período, vivem numa festa permanente. Com os amigos, também filhos ou netos de imigrantes do leste europeu, passeiam pela região de Brighton Beach e Coney Island, num inverno luminoso.

Toda a primeira parte do longa tem a efusividade e as cores de um videoclipe eletrizante. Alguns trechos lembram "Trainspotting" (1996) e outros filmes dos anos 1990, em que uma juventude sem rumo se deixa levar nos embalos de drogas e sexo trash.

Noutras passagens, vem a mente a memória de "Uma Linda Mulher" (1990), sucesso protagonizado por Julia Roberts. Ani ganha roupas novas, torna-se moradora da mansão, viaja de jato particular para Las Vegas. Uma vez em Vegas, claro, ela é pedida em casamento - e os pombinhos se casam.

A virada surpreendente da trama se dá quando os pais de Vanya, na Rússia, ficam sabendo dos rumos da vida do filho. A narrativa ganha então as cores de uma comédia mais física, que beira o pastelão, algo que a plateia não tinha como antecipar, mesmo se antevisse um futuro triste para aquela Cinderela do subúrbio.

Padre armênio que atua como tutor do menino, Toros (Karren Karagulian) interrompe o batizado que celebrava na igreja ortodoxa para tentar anular o matrimônio de Vanya e Ani. Seus capangas invadem a mansão e pegam os dois com pouca roupa.

A partir daí, a tarefa de Mikey Madison deixa de ser somente interpretar uma stripper de 20 anos. Ela se torna uma mulher gigante, capaz de pôr abaixo a trinca de fortões. A configuração rende um punhado de lances hilários.

"Anora" é dirigido por Sean Baker, que havia feito "Tangerine" (2015) e "Projeto Flórida" (2017), histórias cheias de nuances, atentas às brutais desigualdades sociais que fazem funcionar alguns dos mais icônicos pilares do "sonho americano" - como a Disney, em "Projeto Flórida", e a opulência nova-iorquina, agora. Uma melancolia de fundo, anunciada desde o início do novo longa, encontra expressão maior nos instantes finais de "Anora", que gerou certa surpresa ao conquistar a Palma de Ouro.

Um dos algozes da stripper chama atenção para o nome real da personagem, que não é Ani, cuja sonoridade remete a "any", uma mulher qualquer, mas Anora, alguém com brilho próprio, com personalidade original.

A atuação de Madison, na corrida pelo Oscar, atinge um espectro de emoções mais amplas, da alegria juvenil ao drama existencial, passando pela raiva e pela combatividade quase cômicas. Supera-se, assim a impressão inicial da personagem, como uma gata sensualíssima e mais nada. Um grande filme.