Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Mineira na geografia e na essência, a Mostra de Tirantes abre as portas (e as telas) de sua 28ª edição nesta sexta-feira, com a projeção de "Girassol Vermelho", de Eder Santos e Thiago Villas Boas, mas foi buscar no coração de Mesquita (RJ) a atração para fechar seu circuito de sessões populares, na praça: "Kasa Branca". Sua estreia no Rio seria hoje, mas pulou para o dia 30, com a promessa de angariar fãs no prestigioso festival de MG, sempre atento a debates sobre as vivências periféricas.
Esse é um dos assuntos que norteiam o longa-metragem de estreia de Luciano Vidigal, coroado com o troféu Redentor de Melhor Direção da Première Brasil. Nunca se viu o bairro da Chatuba retratado com tamanho lirismo em qualquer tela como se vê nessa ode à amizade.
"Eu sou cria do Vidigal e seria muito fácil filmar lá, mas senti que eu precisava, por meio dessa história, mostrar um Rio de Janeiro que as pessoas precisam conhecer também", diz Luciano ao Correio da Manhã. "Na nossa filmografia, de uma forma geral, não se tem muito a Baixada Fluminense como cenário, e fazer cinema também é um ato territorial. É uma forma de você mostrar o seu lugar para o mundo. Existe essa responsabilidade, de usar as lentes para poder revelar um local para o mundo".
Cria do coletivo teatral carioca Nós do Morro, egresso do mesmo Vidigal celebrizado em seu sobrenome, Luciano já havia conquistado holofotes no passado ao dirigir os curtas "Lá do Alto" (2015) e "Neguinho e Kika" (2005). Rodou ainda um dos episódios de "5xFavela, Agora Por Nós Mesmos", lançado no Festival de Cannes, em 2010. Atuou em sucessos como "Tropa de Elite 2" (2010) e codirigiu o.doc "Cidade de Deus: 10 Anos Depois" (2013), com Cavi Borges. A parceria com esse judoca, produtor e diretor estendeu-se para o projeto "Kasa Branca", que saiu do Fest Aruanda, na Paraíba, com o Grande Prêmio do Júri. Na reta final de 2024, a produção passou pela Itália, no Festival de Turim, onde a luz do fotógrafo Arthur Sherman impressionou olhares europeus. Ele conquistou o Redentor por seu engenho fotográfico no Festival do Rio.
"O Cavi estava fazendo um trabalho com a Secretaria de Cultura de Mesquita, leu o roteiro e falou desse lugar. Eu fui à Chatuba de Mesquita, fiz uma daquelas famosas visitas de locação e me apaixonei. Eu acho que o afeto é genuíno ali. Essa identificação da favela para favela é muito rápida. Temos muitas semelhanças e uma delas é o afeto", diz Vidigal. "O povo brasileiro favelado já tem um afeto muito genuíno".
A vertente histórica do naturalismo, que vem lá da prosa literária, com "O Cortiço", é usada por Vidigal em "Kasa Branca" numa perspectiva solidária (e não catastrofista), a fim de ilustrar a vida de três jovens amigos num cotidiano de reeducação afetiva: Dé (Big Jaum), Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco, hilário). O trio vive os perrengues de uma cidade que isolou bairros e municípios distantes do mar, padecendo de um serviço de saúde deficitário na rede hospitalar pública. Apesar das várias dificuldades, aquela galera não esmorece.
"Apesar de eu ser carioca, eu queria muito revelar a Baixada em 'Kasa Branca' e tive clássicos de Nelson Pereira dos Santos como referência", diz Vidigal, citando "Rio Zona Norte" (1957) e "Rio 40 Graus" (1955). "Tem o neorrealismo italiano também como influência. Esse movimento tem uma coisa de ressignificar o cenário e usá-lo como ferramenta visual. Acredito que os meus diálogos estéticos sejam esses, pois temos a rua como parâmetro. Por mais que seja complexo haver racismo e outras formas de violência atravessando esses espaços, suas ruas estão repletas de pessoas. Logo, são cheias de humanidade. Vou a esses filmes do passado para falar de pessoas com poesia".