Apresentada aos brasileiros em retrospectivas do cinema do Leste Europeu no MAM-Rio e reprises de "A Rena do Nariz Vermelho" (1964), no SBT, a técnica de stop-motion se estrutura sob uma engenharia de filmagem na qual a câmera, em rodagem, é parada e reiniciada repetidas vezes, a fim de dar aos objetos que enquadra um efeito de movimento. O Anima Mundi, festival interrompido sob a guilhotina do governo Bolsonaro, em 2019, encheu nossas miradas com curtas e longas-metragens desenvolvidos sob esse conceito.
No ano um desse evento no país, 1993, o engenho de capturar a ação de bonecos de resina (ou massa) ganhou um reforço nas salas de projeção com o sucesso (seguido de culto) de "O Estranho Mundo de Jack", do artista plástico e cineasta Henry Selick, que ainda faria "Coraline e o Mundo Secreto" (2009).
Tim Burton também entrou nessa seara com "A Noiva Cadáver", de 2005. Outros realizadores autorais, como Guillermo Del Toro (com "Pinóquio") e Wes Anderson (com "O Fantástico Sr. Raposo" e "Ilha dos Cachorros"), aventuraram-se nessa vereda cinematográfica, que venceu o aclamado Festival de Annecy, na França, este ano, com o australiano "Memórias de um Caracol", de Adam Elliot, provando estar em alta. Tal vereda desfruta de um CEP confortável em Bristol, na Inglaterra, na sede da Aardman Animations. Desse estúdio nasceu "Wallace & Gromit: Avengança", iguaria do cardápio da Netflix, recém-chegada ao Brasil. Que delícia de animação ela é!
Fundada em 1972 por Peter Lord e David Sproxton, a Aardman surgiu para desenvolver filmes autorais desligados das exigências de um mercado (que ainda não havia sido fatiado entre as gigantes Disney/Pixar, Illumination e DreamWorks) e produzir conteúdo para a BBC. Em 1985, um talento chamado Nicholas Wulstan "Nick" Park se junta às fileiras da produtora e não tarda a oferecer a seus patrões dois personagens delineados na prancheta da simpatia: o inventor Wallace e seu cão Gromit. Os dois se impuseram no imaginário cinéfilo do Velho Mundo como metáforas de um Reino Unido bucólico logo que estrearam, no curta "Dia de Folga" ("A Grand Day Out", 1989), indicado ao Oscar dois anos depois. Na mesma festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Park concorreu ainda com outro título, "Creature Comforts", que lhe rendeu a primeira de suas quatro estatuetas hollywoodianas.
Antes dessa consagração, ele se impôs como um artesão da imagem animada ao participar de um revolucionário clipe de Peter Gabriel, chamado "Sledgehammer", famoso por um balé de frangos prestes a serem assados. Ganhou novos holofotes em 2000, agora na seara dos longas, com o êxito comercial de "A Fuga das Galinhas" ("Chicken Run"), com a voz de Mel Gibson em seu elenco, no papel do galo Rocky.
Nos últimos 36 anos, Park trouxe Wallace & Gromit de volta à tela várias vezes, em metragens diversas, preservando a essência ecológica deles. Em sua Grã-Bretanha animada, a relação entre humanos e a natureza é mediada por parafernálias analógicas (com molas, parafusos e roldanas) que, apesar de muito excêntricas, harmonizam-se com a flora e a fauna. Agora, em "Avengança", o temor em torno da inteligência artificial alimenta um debate sobre tecnologia numa estrutura de aventura com agilidade adequada a públicos mirins e ironia para adultos.
Indicado ao Globo de Ouro, "Wallace & Gromit: Vengeance Most Fowl" (título original de "Avengança") tem seu enredo derivado do oscarizado "As Calças Erradas" ("The Wrong Trousers", 1993), no qual Park criou um vilão de feições adoráveis: o pinguim ladrão Feathers McGraw. O regresso do bandidão movimenta o novo trabalho do cineasta, dirigido em dupla com Merlin Crossingham.
Nota-se um humor acima do padrão Aardman no roteiro escrito em duo por Mark Burton e Park. Na trama, Feathers McGraw boicota o que prometia ser a invenção mais inovadora de Wallace: um gnomo de jardim robótico. O construto é programado para desempenhar as mais árduas tarefas domésticas e trabalhos de jardinagem, obrigações que antes eram confiadas a Gromit. Leitor contumaz da prosa britânica, inclusive a poesia de John Milton (1608-1674), o cachorro se irrita com seu substituto. A máquina, contudo, funciona bem, até sofrer com a manipulação do bicudo ferrabrás, que almeja se apoderar de um diamante raro.
Apoiado em múltiplas reviravoltas, amplificadas por pela ágil montagem de Dan Hembery, a narrativa de Park e Crossingham se deleita nas potências plásticas oferecidas pelo stop-motion no trato com materiais como massinha. A direção de arte requintada se vale de um colorido dionisíaco que refresca as retinas da gente.