Por: Affonso Nunes

Estação Primeira de Mangueira: orgulho de ser favela

Imagem do ensaio técnico da Mangueira: a influência do povo bantu ainda se faz presente | Foto: Alexandre Macieira/Riotur


A Mangueira vai levantar a Sapucaí com um enredo que resgata e exalta a cultura dos povos Bantu no Rio. A Estação Primeira traz para o carnaval uma narrativa que dá voz à história silenciada de milhares de africanos escravizados e seus descendentes, recontando suas dores, lutas e paixões. O tema, "À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões", nasceu da pesquisa do carnavalesco Sidnei França, inspirado na dissertação do historiador Júlio César Medeiros sobre o Cemitério dos Pretos Novos e a diáspora africana.

Muitas palavras do português falado no Brasil não têm origem lusitana, mas africana. Termos como “quiabo”, “angu”, “quilombo”, “samba” e “quitute” vêm do idioma Bantu, um grupo linguístico e cultural que se espalha por países como Angola, Moçambique, Zimbábue, Quênia e África do Sul. Essa presença se estende para além da língua: foi no Brasil que os ex-escravizados criaram espaços de acolhimento e resistência, como as Casas de Zungu.

Os zungus eram muito mais do que locais de reunião. Ali, africanos e seus descendentes cozinhavam, partilhavam o angu, preservavam suas tradições, dançavam e fortaleciam laços ancestrais. Eram quilombos urbanos, verdadeiros refúgios em meio à opressão colonial.

O carnavalesco Sidnei França recebeu carta branca da escola para escolher o enredo, mergulhando na pesquisa para construir um tema autoral que reflete a trajetória de resistência da população negra carioca.

“Aqui chegaram pretos enfermos, outros já mortos nos porões dos navios tumbeiros. Eles eram jogados na região da Pequena África, perto do Cais do Valongo, em covas rasas sem identificação”, conta Sidnei França.

Para ele, a morte dos africanos escravizados não era apenas física, mas também cultural: um apagamento identitário que foi instrumento do colonialismo.

O desfile de 2025 da Mangueira reafirma a força e a espiritualidade da cultura Bantu, que moldou profundamente a identidade do Brasil. Sidnei destaca que 80% dos negros desembarcados no Rio de Janeiro eram de origem Bantu, o que faz dessa tradição um pilar essencial da história carioca. “Nosso discurso é Bantu por respeito à predominância dessa cultura. Não é sobre vitimização, mas sobre uma perspectiva preta da história”, reforça.

Ao atravessar a Marquês de Sapucaí, a Mangueira não apenas celebra, mas reivindica. O samba-enredo será um grito de resistência, fazendo ecoar vozes que, por séculos, tentaram calar.

ENREDO: "À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões"

Oya, Oya, Oya ê
Oya Matamba de kakoroká zingue (2x)
É de arerê, força de Matamba
É dela o trono onde reina o samba (2x)

Sou a voz do gueto, dona das multidões
Matriarca das paixões, Mangueira
O povo banto que floresce nas vielas
Orgulho de ser favela (2x)

Sou Luanda e Benguela
A dor que se rebela, morte e vida no oceano
Resistência quilombola
Dos pretos novos de Angola
De Cabinda, suburbano

Tronco forte em ribanceira
Flor da terra de Mangueira
Revel do Santo Cristo que condena
Mistério das calungas ancestrais
Que o tempo revelou no cais
E fez do Rio minha África pequena

Ê malungo, que bate tambor de Congo
Faz macumba, dança jongo, ginga na capoeira
Ê malungo, o samba estancou teu sangue
De verde e rosa, renasce a nação de Zambi

Bate folha pra benzer, Pembelê, Kaiango
Guia meu camutuê, Mãe Preta ensinou
Bate folha pra benzer, Pembelê, Kaiango
Sob a cruz do seu altar, inquice incorporou

Forjado no arrepio
Da lei que me fez vadio
Liberto na senzala social
Malandro, arengueiro, marginal

Na gira, jogo de ronda e lundu
Onde a escola de vida é zungu
Fui risco iminente
O alvo que a bala insiste em achar

Lamento informar
Um sobrevivente
Meu som, por você criticado
Sempre censurado pela burguesia
Tomou a cidade de assalto
E hoje, no asfalto
A moda é ser cria

Quer imitar meu riscado
Descolorir o cabelo
Bater cabeça no meu terreiro

É de arerê, força de Matamba
É dela o trono onde reina o samba (2x)
Sou a voz do gueto, dona das multidões
Matriarca das paixões, Mangueira
O povo banto que floresce nas vielas
Orgulho de ser favela (2x)

Autores: Lequinho, Júnior Fionda, Gabriel Machado, Júlio Alves, Guilherme Sá e Paulinho Bandolim