Previsto para ser projetado pelo 78° Festival de Locarno no dia 10 de agosto, num tributo à oscarizada figurinista Milena Canonero, "Megalópolis", um dos filmes mais controversos da década, tratado como cults por alguns e como um delírio por outros, pode ganhar redenção aos olhos da crítica e do público no evento suíço.
Indicado à Palma de Ouro de Cannes em 2024, o longa-metragem rendeu a seu idealizador e realizador, o cineasta Francis Ford Coppola, o mito por trás de "O Poderoso Chefão" (1972), o troféu Razzie (a Framboesa de Ouro) de Pior Direção. Coppola passou pelo Brasil em outubro passado, para projetar o longa-metragem na Mostra de São Paulo, e, na sequência, pelo mundo afora, apanhou de todo lado com essa produção de US$ 120 milhões, bancada do bolso dele (com o lucro de suas vinícolas), que só contabilizou US$ 14 milhões.
Locarno, que se reinventou sob a curadoria de Giona A. Nazzaro, a partir de 2021, pode repaginar a relevância desse exercício autoral. No dia 8 de julho, os concorrentes a seu troféu mais cobiçado, o Leopardo de Ouro, serão anunciados, assim como as atrações as mostras paralelas, mas a saga do arquiteto que almeja construir a cidade ideal vai estar lá, no dia em que Milena for receber o Vision Award por uma carreira premiada por "O Grande Hotel Budapeste" (2014), "Maria Antonieta" (2006) e "Carruagens de Fogo" (1982).
Entre todos os concorrentes do 77° Festival de Cannes, no ao passado, o título que mais chamava atenção e mais mobilizava apostas foi uma produção idealizada há quase quatro décadas por Coppola. Hoje disponível para aluguel no streaming Prime Video, "Megalópolis" era a realização de um desejo antigo dele. Sua primeira exibição mundial, na Croisette, teve sabor de polêmica. É um exercício autoral de risco absoluto, mas que beira a extravagância, resvalando no excesso e até na caricatura, como um trem desgovernado. Apesar do aparente desgoverno, sua dimensão poética é inegável, e irresistível, como foi "A Idade da Terra" (1980), de Glauber Rocha. A música de Osvaldo Golijov é um dos raros pontos em que o filme não gera dissonância de opiniões, assim como a atuação de Giancarlo Esposito no papel do prefeito de uma Nova York apresentada como Nova Roma.
Depois do fenômeno "Oppenheimer", que faturou US$ 972 milhões e conquistou sete Oscars, a indústria do audiovisual anseia por longas voltados para plateias adultas, com temáticas de tons polêmicos, que possam faturar muito e alcançar prestígio, como pode ser, agora, o caso de "F1", com Brad Pitt, e "Extermínio: A Evolução", com Ralph Fiennes. Em abril de 2024, quando as primeiras imagens do experimento de Coppola foram divulgadas, sua superprodução passou a ser encarada como esse potencial sucesso pelo qual Hollywood tanto anseia. Porém, depois de Cannes as certezas deixaram de ser unânimes. Há quem define a película como um tropeço e há quem veja nela um poema com absoluta liberdade narrativa. Ninguém fala em obra-prima, mas todos enxergam ali liberdade plena... e poesia.
Nos EUA, os estúdios da Meca do cinemão não se mobilizaram para dar apoio ao diretor de "A Conversação" (Palma de Ouro de 1974) em seu projeto quase faraônico. Inicialmente, Paul Newman (1925-2008) seria seu protagonista, a julgar por reportagens do início dos anos 2000. Depois, falou-se em Kevin Spacey. Acabou que o papel principal ficou com Adam Driver.
Numa sequência inquietante, o personagem de Driver, o arquiteto Cesar Catilina, caminha sobre o teto de uma construção nababesca e observa os céus de sua cidade até que, prestes a cair, ele consegue parar o tempo com uma palavra de ordem, estalando o dedo para que tudo volte a funcionar. Ganhador de um Prêmio Nobel, Cesar costuma ser definido como cientista após ter inventado uma substância, o Megalon, capaz de paralisar o fluxo temporal. Seu sonho é construir um mundo utópico. Toda a trama faz referência explícita ao Império Romano, desde os nomes dos personagens até diálogos em latim na narração feita por Laurence Fishburne. Sua forma de narrar abre espaço para reflexão filosófica acerca da ponte entre aquele mundo e uma tradição imperial que sucumbiu pela barbárie.
Cesar é uma figura controvertida, com um histórico afetivo traiçoeiro. Ao alcançar fama, ele almeja criar uma NY perfeita, apesar de o alcaide do local, Cícero (Esposito), discordar de seus atos. A peleja deles é narrada com muita experimentação e até com imagens documentais. Num dado momento da projeção de Cannes, uma pessoa subiu no palco e se dirigiu à tela. É um exercício do chamado "cinema ao vivo". A pessoa simulava ser um entrevistador que se dirigia a Cesar, na tela, numa conversa tridimensional, como se fosse em tempo real.
Idealizada por Coppola em 1977, esboçada como projeto em 1983 e retomada em 2019, a trama de "Megalópolis" conta com um elenco de peso, que reúne Dustin Hoffman, Jon Voight, Aubrey Plaza, Nathalie Emmanuel, Shia LaBeouf e Talia Shire (irmã do cineasta). As filmagens aconteceram em 2022 e 2023, nos estúdios Trilith, em Atlanta, na Geórgia.
Além de Milena, Locarno homenageia as estrelas Lucy Liu, Emma Thompson e Jackie Chan, além do diretor Alexander Payne. O presidente de seu júri é o cineasta Rithy Pahn.