Ator, diretor, escritor e memorialista do carnaval carioca, o artista morreu aos 95 anos deixando legado extraordinário para a cultura brasileira e a identidade negra
O Brasil perdeu um de seus artistas mais completos e representativos. Haroldo Costa, ator, diretor, escritor e memorialista do carnaval carioca, faleceu nesate sábado (13), aos 95 anos. De acordo com sua família, ele havia se internado recentemente para tratar de complicações de saúde decorrentes de sua idade avançada.
Nascido em 13 de maio de 1930, no Rio de Janeiro, Haroldo viveu a complexidade e os desafios de ser um negro no Brasil. Filho de Eurides e Luiz Costa, perdeu a mãe aos dois anos e passou boa parte da infância em Maceió, onde o rico calendário festivo folclórico alagoano despertou seu interesse pelas artes. O retorno à cidade natal, por volta dos dez anos, trouxe outro encontro determinante: as músicas carnavalescas que chegavam pelo rádio e que marcariam profundamente sua trajetória.
Antes de se tornar um dos nomes fundamentais do teatro negro brasileiro, Costa trabalhou como balconista de livraria. Sua entrada nos palcos aconteceu por acaso, num daqueles episódios que parecem escritos pela própria dramaturgia da vida. Em depoimento ao Museu da Pessoa, o artista relatou que o pai lhe entregou um panfleto sobre alfabetização para adultos junto ao Teatro Experimental do Negro (TEN). Com boa formação escolar, foi ajudar como professor. Durante um ensaio, um ator faltou e Haroldo foi chamado para ler a parte do ausente. Acabou ficando com o papel de Peregrino na peça "O Filho Pródigo", de Lúcia Cardoso. Estava inaugurada uma carreira brilhante e de referência para as gerações seguintes de artistas negros.
No TEN, movimento fundado por Abdias Nascimento em 1944 e que revolucionou a presença negra nos palcos brasileiros, Haroldo Costa integrou elencos de montagens marcantes. Participou de "O Pagador de Promessas", "Xica da Silva", "O Auto da Compadecida" e, especialmente, "Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes, na qual foi protagonista. A peça, que transpunha o mito grego para o morro carioca, parecia desenhada para aquele multiartista que se impôs por seu talento e inteligência.
Inquieto, Haroldo esteve entre os fundadores do Grupo dos Novos, que buscava ir além dos clássicos do teatro negro. O coletivo mudaria de nome para Teatro Folclórico Brasileiro antes de uma apresentação decisiva no Teatro Odeon. Ali, um empresário inglês que buscava artistas para um festival em Londres e uma turnê pela América do Sul descobriu o grupo. "Mudamos o nome para Brasiliana porque o empresário chegou à conclusão de que Teatro Folclórico Brasileiro dava uma conotação muito acadêmica", contava. Como fundador e diretor artístico da Companhia Brasiliana, percorreu dezenas de países durante cinco anos, levando a cultura brasileira ao mundo.
A dimensão de escritor e intelectual se consolidou em 1982, com a publicação de "Fala, Crioulo", obra pioneira construída a partir de depoimentos de pessoas negras sobre a realidade brasileira. "O 'Fala, Crioulo' é um livro que nasceu logo depois da extinção do AI-5. Porque sempre me incomodou esse papo de democracia racial, essas coisas que se tem oficialmente e que não correspondem à verdade. Eu peguei uma série de pessoas, algumas conhecidas, a maioria, não. Tem pivete, prostituta, tem tudo. Era para dar um espectro", explicava o autor, demonstrando consciência política aguçada sobre as contradições raciais brasileiras.
Sua paixão pelo carnaval se traduziu em produção bibliográfica fundamental. Escreveu "100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro" (2001) e foi escolhido presidente de honra da Academia Brasileira de Artes Carnavalescas. Mantinha vínculo especial com a escola de samba Salgueiro desde 1963, relação que resultou nos livros "Salgueiro: Academia de Samba" (1984) e "Salgueiro - 50 Anos de Glória". Colaborou ainda com jornais como "O Globo", "Última Hora", "Para Todos" e "Leitura". Se vasto cinhecimento sobre o carnaval fez dele comentarista das transmissões dos desfiles das escolas de samba na extinta TV Manchete e, posteriormente, na TV Globo.
O Salgueiro lamentou a morte de Haroldo, destacando o seu legado. "Foi memória viva, foi guardião da nossa história, foi voz firme na defesa do samba, do Carnaval e da cultura afro-brasileira. Um homem que entendeu cedo que o samba não podia ser apenas vivido. Precisava ser preservado, estudado, contado e respeitado", afirmou a escola, em nota nas redes sociais.
Na televisão, transitou entre direção e atuação. Dirigiu programas como "Musicalíssima", "Oh, Que Delícia de Show", "Dercy Espetacular", "Discoteca do Chacrinha" e "Concertos Para a Juventude". Como ator, participou de novelas da Rede Manchete - "Kananga do Japão", "A História de Ana Raio", "Zé Trovão" e "Amazônia" - e das minisséries "Chiquinha Gonzaga" e "Subúrbia", na Globo.
"Haroldo foi um mestre, um amigo, um parceiro em vários momentos da minha vida. Um homem preto, lindo, discreto, ator, pesquisador, pioneiro exemplo de desbravador da inclusão social dos ex-escravizados, num tempo infeliz em que tudo lhes era proibido. Ele era tudo! E, durante dois anos, tive a sorte de tê-lo como meu vice, na presidência do Museu da Imagem e do Som. Um presente da vida! Estou muito mal com a sua partida!", disse a compositora e pesquisadora musical Marília Trindade Barboza em suas redes sociais.
Até os últimos meses, Haroldo Costa permaneceu ativo intelectualmente, concedendo entrevistas a todos os veículos que lhe procuravam. Em maio, ao completar 95 anos, recebeu diversas homenagens. Culto, carismático e dono de personalidade fascinante, Haroldo Costa deixa um legado fundamental para se compreender a cultura popular.