Quando Iranette Ferreira Barcellos pisou pela primeira vez no barracão da Portela, aos quatro anos de idade, levada pelos pais, ninguém poderia imaginar que aquela menina se tornaria uma das figuras mais emblemáticas do samba carioca. Mais de oito décadas depois, Tia Surica, como é carinhosamente conhecida, vai ser tema de uma série documental, que terá episódios gravados em Portugal. A viagem, programada para o próximo anos, consagra uma história de amor e devoção ao samba, à Portela e à cultura afro-brasileira.
Uma feijoada que já deu muito samba
A conexão entre Tia Surica e a gastronomia é cantada em prosa e verso. Sua feijoada, servida tradicionalmente no Cafofo da Surica, em Oswaldo Cruz _ e, ocasionalmente, em eventos realizados no Teatro Rival Petrobras -, foi reconhecida como Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Rio de Janeiro. O espaço, que já recebeu personalidades como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está atualmente em processo de reforma para melhor acomodar as rodas de samba que se tornaram referência na região, um espaço de música, culinária e resistência cultural.
Nascida em 17 de novembro de 1939, Tia Surica completa 85 anos nesta segunda-feira (17) com uma energia que desafia o tempo. Sua história com a Portela começou na infância e se consolidou ao longo de seis décadas de dedicação e amor à escola. Em 1966, ela escreveu um capítulo fundamental na história do carnaval carioca ao se tornar a primeira mulher a interpretar um samba-enredo na avenida. O samba "Memórias de Um Sargente de Milícias", de Paulinho da Viola, ganharia uma interpretação histórica. "A potente voz da Jovem intérprete Surica empolgava os componentes e o público. Sob fortes aplausos, a bateria, as baianas e os passistas portelenses deixaram a avenida sonhando com mais um campeonato. A apresentação não deixava dúvidas de que a Portela era forte candidata ao título", descreve a escola em seu site oficial ao comentar a histórica conquista de 1966, cujo verão foi marcado por fortes chuvas qua maltrataram toda a cidade.
O feito, que hoje pode parecer natural, representou uma ruptura significativa em um universo tradicionalmente dominado por homens. A ideia veio de Natal, o grande comandante da Portela naqueles tempos. "Eu estava ensaiando com as pastoras e o falecido Natal me chamou: 'Vem cá, pequena. É você quem vai puxar o nosso samba na avenida'. E eu respondi 'mas eu, seu Natal? Eu já estou com a roupa da minha ala pronta'. E aí ele disse que com aquela roupa não poderia seria ser porque os jurados iriam achar que me tiraram da ala para puxar o samba. Aí ele falou com o falecido Jaburu que me levou na Seda Moderna para fazer uma nova roupa. E assim fui pra avenida ser campeã com o samba do Paulinho da Viola", disse a matriarca ao Correio da Manhã.
Tia Surica, que já havia pessado pelas pastoras e a ala das baianas da escola, passou também a ser cantora. Mas sempre avisa que só canta os sambas dos compositores de sua escola de coração. Tal envolvimento com a azul e branco de Oswaldo Cruz a conduziria à Velha Guarda, o grupo que cultua as tradições portelenses e do qual faz parte desde 1980. "Eu estava morando em São João de Meriti e o Manacéa estava me procurando. Quando nos encontramos, ele me convidou para entrar na Velha Guarda, onde estou até hoje", recorda.
Décadas depois, em 2022, Tia Surica voltou a fazer história ao assumir a presidência de honra da escola, cargo que ocupou até 2025, sendo novamente a primeira mulher a alcançar essa posição.
A trajetória artística de Tia Surica também é marcada por conquistas tardias que demonstram sua determinação. Ela lançou seu primeiro disco, "Tudo Azul", em 2003, quando já estava próxima dos 60 anos. O álbum, produzido pelo selo Fina Flor, reuniu composições de mestres da Portela como Monarco e Chico Santana, consolidando seu papel não apenas como intérprete, mas como guardiã de um repertório que atravessa gerações. Sua discografia solo inclui outros três álbuns sem contar suas gravações com a Velha Guarda e colaborações com Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Zélia Duncan, Alcione, Beth Carvalho e Paulinho da Viola.
Protagonismo
Tia Surica representa uma linhagem de mulheres negras que, apesar das adversidades impostas pelo machismo e pelo racismo estrutural, construíram espaços de poder e protagonismo no samba. Impossível não pensar nela sem lembrar das "tias" baianas que, no início do século XX, estabeleceram as bases do que viria a se tornar o samba urbano. E nesses mais de 60 anos de carreira, Tia Surica não apenas cantou e desfilou, mas educou, acolheu e inspirou.
Toda essa história de amor em tons de azul vai ser contada na série "Tia Surica - A Matriarca do Samba", um projeto que prevê oito episódios dedicados a explorar sua trajetória, sua relação visceral com a Portela e com a preservação da cultura afro-brasileira. A produção, que se encontra em fase de captação de recursos, promete ser um mergulho profundo na memória viva do samba carioca, registrando depoimentos, imagens históricas e performances que atravessam décadas. Os dois últimos espisódios vão registrar uma viagem que a sambista fará a Portugal. "Já me apresentei na França, na Itália e em outros países, mas conhecer Portugal é um sonho que tenho e os sonhos a gente persegue", ensina.
Aos 85 anos, Tia Surica permanece ativa, participando de eventos culturais e culinários, ensaios e rodas de samba. Sua presença nos barracões da Portela e nas ruas de Oswaldo Cruz e Madureira assegura que a cultura popular segue viva como nunca.