Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Márcio Vito, um Robert Duvall à brasileira

Márcio Vito ganhou o Redentor de melhor ator por seu desempenho no longa de Caco Ciocler | Foto: Divulgação

Atuação premiada de Márcio Vito em 'Eu Não Te Ouço', de Caco Ciocler, pode ser conferida nesta terça na Mostra de SP

Hollywood possui um jargão, the actor's actor ("o ator favorito dos atores"), cunhado para se referir a Robert Duvall e a seu prestígio entre colegas de classe, que, no Brasil, comumente se alinha com a forma reverente de estrelas dos mais variados (sobretudo altos) quilates reagirem às interpretações de Márcio Vito. A ovação que ele recebeu no Odeon, no último dia 12, ao conquistar o troféu Redentor por sua atuação no longa-metragem "Eu Não Te Ouço", de Caco Ciocler, comprova o fascínio que gera entre seus pares - e em suas plateias. À moda Duvall - que se impõe sinuosamente em "O Poderoso Chefão", entre titãs como Marlon Brando e Al Pacino, brilhando pelas beiradas -, Vito tira muito (põe muito nisso) do pouco. Raros são os intérpretes que flanam entre diferentes personagens - num só monólogo - com a harmonia que ele esbanjou na peça "Claustrofobia". Sabe ainda ser harmônico ao dividir bolas, em textos como "Dois Contra o Mundo" (num duo com Priscilla Rozenbaum) ou no coletivo de séries ou novelas, como "Guerreiros do Sol", do Globoplay, em que vive Natanael. 

 

'O teatro me deu uma escuta do silêncio'

Márcio Vito, ator e autor | Foto: Rafa Marques/Divulgação

Esta noite, a Mostra de São Paulo vai conferir a excelência de Márcio Vito numa projeção de "Eu Não Te Ouço" no Reserva Cultural, às 22h. A trama remete ao Brasil de 2022, quando uma cena materializou um país politicamente polarizado: na tentativa de impedir um caminhão de furar um protesto de apoiadores de (um já derrotado) Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, um homem vestido de verde e amarelo, com os braços abertos em cruz, agarra-se à frente do veículo e é arrastado, por quilômetros. Sob a direção de Ciocler, Vito vive tanto o motorista do caminhão quanto o "patriota" em imolação, inaugurando um jogo de espelhamento e projeção. A conversa a seguir é um estudo sobre essa dinâmica de ação e é a radiografia de um astro em estado de graça.

O título do filme remete à dificuldade de escuta que contaminou o país na disseminação do ódio da polarização política. O que o teatro, teu lar e teu molde, deu aos teus tímpanos de mais valioso para o exercício de escutar o outro?

Márcio Vito - O teatro me deu a percepção de que os melhores personagens às vezes são um recorte de pessoas que talvez não saltem aos olhos de artistas que estejam procurando joias lapidadas. Me deu a percepção de que, antes da peça, antes do personagem, estão as pessoas. Me deu uma escuta do silêncio, das palavras que não são ditas. O processo desse filme é um mapa valioso de personagens porque, através da condução da Bel Teixeira, a partir da ideia do Caco Ciocler, existe uma observação das complexidades das personagens envolvidas na primeira ideia que passam a ser recheadas com que a existe de melhor e mais singelo entre nós três, que temos por ofício a observação do outro como ferramenta de trabalho. Foi uma mistura de complexidades muito sensíveis no processo de criação desse filme.

O quanto esse filme te abre os ouvidos, para além do que o teatro já te municia de escuta?

Esse processo, criado pela Bel, inaugura em mim uma observação que não tem na presença seu começo e finalidade, mas faz da escuta o ponto de partida para descobrir o outro. É como um espelho, que nos permite explorar e explodir, na mistura quase inconsciente dos envolvidos.

Como se dá o processo de trabalho com Caco Ciocler?

De forma leve e livre. O Caco, das duas vezes em que trabalhei com ele nesta relação de diretor/ator, foi muito claro na exposição de suas ideias e propostas. Ele é um provocador artístico muito maduro e inspirador. Me sinto contagiado por suas questões e muito estimulado a criar sob seu olhar, porque é sempre um diálogo rico, que permite aprofundar visões cotidianas que ele traz para o cinema. Algo muito especial acontece nos seus filmes, algo que no teatro é mais comum: a obra realmente se completa, se expande e melhora a partir do contato com o espectador.

Depois do '5xFavela, Agora Por Nós Mesmos", de 2010, o audiovisual não te largou mais. O que o cinema te trouxe de mais intenso na construção da tua carreira de ator?

Na verdade, é preciso voltar pelo menos mais um ano nessa conta porque em 2009, também em Cannes, eu estive presente com um filme discreto, chamado "No Meu Lugar", de Eduardo Valente. E por conta de seu olhar internacional da arte do cinema e por sua atividade na crítica e por seu trabalho com formação de olhares, o filme foi muito visto por pessoas que, de alguma forma, reconheceram no meu trabalho uma profundidade que até então eu não havia podido exercitar, embora acreditasse possuir. A essa altura, já era discípulo de Nelson Xavier, Paulo José e Fernando Torres. Já tinha feito filmes com Lima Duarte, Fernanda Montenegro, Raul Cortez... e fiz teatro com Laura Cardoso. Não estava exatamente distraído. Já tinha feito uma minissérie, "Amazônia", com personagem de destaque. Sempre fui meio velho na arte, um apaixonado por cinema nacional e pela arte da atuação, mas o que veio depois de "No Meu Lugar" estava intimamente e sutilmente ligado ao filme.

O que você tem pela frente de filmes e de peças para os próximos meses?

Estou envolvido na criação de um filme com outros artistas que admiro muito, sob o olhar e a direção da Julia Murat. Somos uma pequena equipe de sua extrema confiança a se jogar no cinema de corpo e alma. No teatro, estou dirigindo, com Jefferson Almeida, meu parceiro de elenco em "Guerreiros do Sol", uma versão de "Navalha na Carne". Como ator, vou seguindo com o monólogo "Claustrofobia", dirigido por César Augusto, em apresentações por unidades do Sesc no estado do Rio, e sigo também com Ricardo Kosovski, na peça "Sermão de Santo Antônio Aos Peixes", um trabalho lindo, que dá continuidade a uma pesquisa do diretor Moacir Chaves, iniciada há 30 anos, com o ator Pedro Paulo Rangel. Para o ano que vem, minha felicidade maior é voltar com o monólogo "A Sobrancelha É O Bigode Do Olho: Uma Conferência do Barão de Itararé", para comemorar os cem anos de fundação do jornal "A Manha", do jornalista de humor Aparício Torelly.