Esta noite, a Mostra de São Paulo vai conferir a excelência de Márcio Vito numa projeção de "Eu Não Te Ouço" no Reserva Cultural, às 22h. A trama remete ao Brasil de 2022, quando uma cena materializou um país politicamente polarizado: na tentativa de impedir um caminhão de furar um protesto de apoiadores de (um já derrotado) Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, um homem vestido de verde e amarelo, com os braços abertos em cruz, agarra-se à frente do veículo e é arrastado, por quilômetros. Sob a direção de Ciocler, Vito vive tanto o motorista do caminhão quanto o "patriota" em imolação, inaugurando um jogo de espelhamento e projeção. A conversa a seguir é um estudo sobre essa dinâmica de ação e é a radiografia de um astro em estado de graça.
O título do filme remete à dificuldade de escuta que contaminou o país na disseminação do ódio da polarização política. O que o teatro, teu lar e teu molde, deu aos teus tímpanos de mais valioso para o exercício de escutar o outro?
Márcio Vito - O teatro me deu a percepção de que os melhores personagens às vezes são um recorte de pessoas que talvez não saltem aos olhos de artistas que estejam procurando joias lapidadas. Me deu a percepção de que, antes da peça, antes do personagem, estão as pessoas. Me deu uma escuta do silêncio, das palavras que não são ditas. O processo desse filme é um mapa valioso de personagens porque, através da condução da Bel Teixeira, a partir da ideia do Caco Ciocler, existe uma observação das complexidades das personagens envolvidas na primeira ideia que passam a ser recheadas com que a existe de melhor e mais singelo entre nós três, que temos por ofício a observação do outro como ferramenta de trabalho. Foi uma mistura de complexidades muito sensíveis no processo de criação desse filme.
O quanto esse filme te abre os ouvidos, para além do que o teatro já te municia de escuta?
Esse processo, criado pela Bel, inaugura em mim uma observação que não tem na presença seu começo e finalidade, mas faz da escuta o ponto de partida para descobrir o outro. É como um espelho, que nos permite explorar e explodir, na mistura quase inconsciente dos envolvidos.
Como se dá o processo de trabalho com Caco Ciocler?
De forma leve e livre. O Caco, das duas vezes em que trabalhei com ele nesta relação de diretor/ator, foi muito claro na exposição de suas ideias e propostas. Ele é um provocador artístico muito maduro e inspirador. Me sinto contagiado por suas questões e muito estimulado a criar sob seu olhar, porque é sempre um diálogo rico, que permite aprofundar visões cotidianas que ele traz para o cinema. Algo muito especial acontece nos seus filmes, algo que no teatro é mais comum: a obra realmente se completa, se expande e melhora a partir do contato com o espectador.
Depois do '5xFavela, Agora Por Nós Mesmos", de 2010, o audiovisual não te largou mais. O que o cinema te trouxe de mais intenso na construção da tua carreira de ator?
Na verdade, é preciso voltar pelo menos mais um ano nessa conta porque em 2009, também em Cannes, eu estive presente com um filme discreto, chamado "No Meu Lugar", de Eduardo Valente. E por conta de seu olhar internacional da arte do cinema e por sua atividade na crítica e por seu trabalho com formação de olhares, o filme foi muito visto por pessoas que, de alguma forma, reconheceram no meu trabalho uma profundidade que até então eu não havia podido exercitar, embora acreditasse possuir. A essa altura, já era discípulo de Nelson Xavier, Paulo José e Fernando Torres. Já tinha feito filmes com Lima Duarte, Fernanda Montenegro, Raul Cortez... e fiz teatro com Laura Cardoso. Não estava exatamente distraído. Já tinha feito uma minissérie, "Amazônia", com personagem de destaque. Sempre fui meio velho na arte, um apaixonado por cinema nacional e pela arte da atuação, mas o que veio depois de "No Meu Lugar" estava intimamente e sutilmente ligado ao filme.
O que você tem pela frente de filmes e de peças para os próximos meses?
Estou envolvido na criação de um filme com outros artistas que admiro muito, sob o olhar e a direção da Julia Murat. Somos uma pequena equipe de sua extrema confiança a se jogar no cinema de corpo e alma. No teatro, estou dirigindo, com Jefferson Almeida, meu parceiro de elenco em "Guerreiros do Sol", uma versão de "Navalha na Carne". Como ator, vou seguindo com o monólogo "Claustrofobia", dirigido por César Augusto, em apresentações por unidades do Sesc no estado do Rio, e sigo também com Ricardo Kosovski, na peça "Sermão de Santo Antônio Aos Peixes", um trabalho lindo, que dá continuidade a uma pesquisa do diretor Moacir Chaves, iniciada há 30 anos, com o ator Pedro Paulo Rangel. Para o ano que vem, minha felicidade maior é voltar com o monólogo "A Sobrancelha É O Bigode Do Olho: Uma Conferência do Barão de Itararé", para comemorar os cem anos de fundação do jornal "A Manha", do jornalista de humor Aparício Torelly.