Páginas escritas no século V a. C., o traidor é lido em "A Arte da Guerra", de Sun Tzu. Quem, primeiro, pensou o traidor foi Platão, imagem que surge na guerra [interna] da polis de "A República". A marca do traidor é a do tirano, e, como traidor, o tirano inverte a ordem das coisas: o-que-é-não-é-e-o-que-não-é-é. O rosto serve-se da ambiguidade de ser-e-não-ser ao mesmo tempo.
Esse jogo político foi estetizado pelo doutor em Filosofia Joseph Goebbels, cuja propaganda esteve ao gosto de Adolf Hitler, propaganda afirmada, aliás, pelo conceito de identidade. A luta política de Hitler é identitária, isto é, em razão de afirmar "o que é" e "quem é", essa luta afirma o "ser", o que implica alimentar o que é oposto a ela: o inimigo. A identidade necessita de "o que não é ela", necessita de seu oposto.
No entanto, caso não exista o inimigo, a identidade o inventa, já que a luta da política identitária, para se manter viva, rumina o "não-ser", rumina o inimigo. Estranho à pátria porque não tem a nossa identidade, o inimigo pertence ao que está "fora" de nós; mas, este "fora", a identidade o inventa a partir de "dentro" da pátria. A esse "fora-dentro", Platão o chama de guerra familiar ou sedição, mais conhecida entre nós como guerra civil [stasis], guerra essa que é estado de exceção.
Um esclarecimento: exceção vem de "ex-capare", que significa "capturada fora", o que significa dizer que o estado de exceção é estado tirânico porque inventa o "fora" [o estranho] como rosto "dentro" da nação, em outras palavras, o rosto com que a nação se identifica é inimigo. O estado de exceção captura, pois, o inimigo [ou o "fora"] para "dentro" de nós, em síntese: quem é amigo [o dentro] torna-se inimigo [o fora]. O estado de exceção é o estado do paradoxo, onde, não havendo mais a clareza do "ser" ou a clareza de "o que é", a violência impera.
A história da extrema direita é história da luta identitária, que, jogando "entre" ser-e-não-ser, inventa o inimigo. O tirano movimenta-se na fronteira, isto é, "entre" extremos, e o estado de exceção é um "entre", espaço em que amigo-e-inimigo misturam-se. O tirano movimenta-se nesse espaço, no limiar dos opostos: "entre" a-força-bruta-do-corpo-e-a-força-discursiva-do-espírito. Lemos isso em "Mein Kampf", onde a forma ambígua ou o paradoxo conduziu Hitler ao poder. O Terceiro Reich, um estado de exceção.