Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Dissonâncias da alienação digital em diversas linguagens artísticas

Espetáculo 'Feio' parte do culto às aparências para debater pertencimento | Foto: Renato Mangolin/Divulgação

Ser ou não ser o que o outro quer... e a sociedade impõe... virou um dos dilemas de urgência das artes na contemporaneidade, vide o maior fenômeno do streaming de 2025 (até agora), a série britânica da Netflix "Adolescência", e um comjunto de expressões audiovisuais e teatrais que pipocam por diferentes arenas da cultura. No dia 14 de agosto, o Festival de Locarno, na Suíça, tratará do tema ao projetar "Rosemead", numa sessão em homenagem à sua estrela, Lucy Liu. Situado no coração do San Gabriel Valley, com base numa história real, o filme é a saga de uma imigrante chinesa, portadora de uma doença terminal, que descobre a perturbadora fixação de seu filho adolescente por tiroteios em massa.

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'Rosemead' será exibido em Locarno, em 14 de agosto, em tributo às atriz Lucy Liu | Foto: LIFF

Bombardeado pela web e isolado no conflito existencial dos aborrescentes, o guri sublima sua rejeição com o culto ao ódio. À medida que sua saúde se deteriora, essa mãe vivida por Lucy toma medidas desesperadas - e moralmente complexas - para protegê-lo e enfrentar as trevas que o atraem. O enredo é perfumado de polêmica e inflamou inquietações acercas dos sintomas de alienação digital em sua passagem pelo Festival de Tribeca, em Nova York.

Em fevereiro, a Berlinale enveredou por querelas acerca de ser ou não aceito (por si mesmo), à sombra de um convívio social especializado em excluir, durante a projeção de "Sorda", de Eva Libertad, produção da Espanha, que amplia o tema para o universo dos PCDs e da vida a dois. Voltou para casa com a láurea da Associação de Cinemas de Arte da Europa graças à batalha de Ángela, uma mulher com problemas auditivos, e Héctor, seu parceiro, que esperam um filho. Apesar de muito animados com a gravidez, não sabem se o bebê vai herdar a surdez da mãe, que passa a reagir com aspereza à sua condição. Após um trabalho de parto complicado e emocionalmente intenso, Ángela dá à luz sua filha, mas o casal terá que esperar alguns meses para saber se a neném sofre de algum problema de audição. Durante esse período, Héctor se esforça para entender completamente os desafios que Ángela está enfrentando.

No âmbito brasileiro nas artes cênicas, o impacto de redes sociais na construção da identidade, a busca incessante por aceitação, o excesso de medicalização e os limites entre humanidade e tecnologia se amalgamam nos palcos por onde passa o espetáculo "Feio". A peça encenada pela Companhia Dobra finca bandeira em Niterói, com sessões neste fim de semana no Teatro da UFF (sexta e sábado, às 20h, e domingo, às 19h), antes de seguir para o Teatro Gaylussac, nos dias 4, 5 e 6 de julho, sempre às 19h.

Livremente inspirada na fábula "O Patinho Feio", de Hans Christian Andersen, a montagem propõe uma reflexão atualizada e provocadora sobre o modo como as tecnologias e o ambiente virtual moldam a forma como nos enxergamos e nos relacionamos. Na trama, uma família tradicional é surpreendida pela gravidez de gêmeos — "Feio" e um segundo filho essencial para o desenrolar da história —, e a partir deste enredo a montagem explora questões como o medo da rejeição, a pressão por pertencimento e a tentativa constante de corrigir aquilo que foge dos padrões, no corpo, comportamento ou imagem. Com dramaturgia de Cecilia Ripoll, direção de Helena Marques e atuação de Breno Paraizo, Caio Passos, Fábio Lacerda e Reinaldo Dutra, o espetáculo transita entre o gesto e a palavra, entre o real e o simbólico, entre o concreto e o abstrato.

Nos quadrinhos, o tema da dissonância que gera abandono (ou fúria) está em alta. Um dos títulos que melhor exploram essa angústia é "Árduo Amanhã", de Eleanor Davis. A autora dessa HQ da editora Tordesilhas ganhou o LA Times Booker Prize por um estudo precioso sobre o limite entre inércia e resiliência numa narrativa que celebra a união, na amizade e no amor. Sua protagonista, Hannah, uma cuidadora de idosas, que anda cheia de dúvidas em suas cabeças, é "a" personagem de quadrinhos do ano em nossas livrarias. Seu namorado é maconheiro profissional que vive da erva e sonha finalizar uma casa do campo, para plantar legumes e cânhamo. Já Hannah só quer ter um bebê, mas a vida anda cruel com seu desejo.

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A artista gráfica Bilquis Evely reinventa a Supergirl num gibi indicado ao prêmio Eisner que debate inadequação | Foto: Panini Comics

No universo dos vigilantes cheios de poderes, "Supergirl: A Mulher Do Amanhã" (Ed. Panini) toca na mesma inquietude explorada por Eleanor pelo prisma da fantasia. Graças à arte exuberante da desenhista Bilquis Evely, esta minissérie compilada no Brasil num só volume fez sucesso de venda nos EUA e concorreu ao Prêmio Eisner, o Oscar das HQs. Sua protagonista, Kara Zor-El, passou por muitas aventuras épicas ao longo dos anos, mas hoje acredita estar sem propósito. Para onde vá, as pessoas só a veem como prima do Superman. Até que tudo muda, quando uma garota alienígena a procura para uma missão de vingança contra os vilões que exterminaram seu planeta. Agora, uma kryptoniana, um cachorro e uma criança com o coração partido partem para o espaço em uma jornada que mudará suas vidas para sempre.