Começo da noite, os jovens escoteiros marcam ponto no bar Sniff', fêmur de Copacabana, não porque bebericam, mas sim porque esperam seus líderes e chefes para um bate-papo qualquer - eles se reúnem no pátio da igreja aos sábados, mas se encontram em vários outros dias da semana, basicamente para conversa fiada.
No balcão, o crítico musical Arthur Laranjeira conversa com Paulinho Johrei, um vizinho delicado. Paulo, um dos garotos presentes no bar, fanático por rock, quase toma um susto ao ver que, no canto do balcão, há um desconhecido no local, aparentando ter cerca de quarenta anos de idade, usando um blazer surrado e um chapéu de abas curtas, bebendo um drinque que parecia até ser uísque:
"Fred, olha bem, presta atenção: eu estou ficando louco ou aquele ali é simplesmente o Tom Waits?"
"Cara, não pode ser, mas parece pra caralho! Mas se ele estivesse no Brasil, a imprensa ia noticiar..."
"Tem certeza disso?"
"Não."
Tom Waits, o braço musical da literatura beat, discípulo de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e principalmente William Burroughs. O cantor das noites de derrota, ds bêbados e mendigos, dos sem teto e sem rumo, das criaturas da noite, com sua mstura de jazz e blues cantada quase em grunhidos ferozes, viscerais.
O bardo ajeitava o chapéu, parecia estar desconfortável com aquilo e não olhava para o lado, obcecado visualmente por seu suposto drinque. A julgar verdadeira a análise de Flávio, o mais underground de todos os compositores musicais etadunidenses tomava um trago em pleno bar do Seu Manel. E agora?
"Vai lá falar com ele?"
"Tou com vergonha, cara, é muito ídolo!"
Os outros escoteiros olham com estranheza os cochichos da dupla, sem entender o que pode estar acontecendo. Fredão resolve matar a charada. Pede um minutinho de licença, interrompe um papo do jornalista Laranjeira e pergunta: "Seu Arthur, desculpe atrapalhar, mas é que o senhor entende muito de música, será que podia nos ajudar com uma dúvida? Discretamente, dá uma olhadinha atrás do senhor. Aquele homem ali no canto é o compositor Tom Waits?"
Arthur se vira: "Mas quem?"
Não havia mais ninguém no lugar do suposto Tom Waits. Sumiu. Evadiu-se sinistramente. Fred chamou Paulo, que não viu o desaparecimento do bebum, os dois foram na direção dos outros escoteiros, mais afastados: "Vocês viram aquele moço que estava tomando um uísque ali no canto?".
"Ué, ele tinha pego o copo e ido na direção de vocês, pensei que o conhecessem".
De longe, Arthur girava o dedo indicador perto da orelha direita, simulando o gesticular de loucura. A seu lado, o sorridente e enigmático Paulinho Johrei fitava os jovens conversando, tentando entender o contexto roqueiro. Paulo e Fred, incrédulos, tentavam entender o que tinha se passado, sem nenhuma pista. Se esteve no Sniff's, Tom Waits foi um mestre em sartar de banda e dar no pé. Foi em 1989, mas podia ter sido em 2020.