Gil começou com duas músicas que deram conta dos pilares de sua carreira - o baião de Luiz Gonzaga, o samba baiano de Dorival Caymmi e a bossa nova de João Gilberto. A primeira foi "Eu só Quero um Xodó", composição de Dominguinhos que Gil popularizou nos anos 1980, a segunda, "Eu Vim da Bahia", de Caymmi, mas muito conhecida na voz de João.
Esta última serviu de introdução ao próximo passo da narrativa - Gil era então o baiano que chegava no Sudeste. Entre Rio de Janeiro e São Paulo, ele protagonizou os anos de enfrentamento estético e político da tropicália, representados por "Procissão" e "Domingo no Parque", ambas da segunda metade da década de 1960.
A repressão dos anos de chumbo da ditadura militar chegou através de Chico Buarque. Em depoimento em vídeo, ele contou como compôs ao lado de Gil a música "Cálice", em suas palavras, "uma música que falava de censura e foi censurada". Ele falava sobre o AI-5 e como "os microfones [dele e de Gil] foram silenciados" quando os gritos de "sem anistia" inflamaram uma parte da plateia.
A partir dali, o barulho era tanto que era quase impossível entender o depoimento de Chico, anterior a uma performance carregada de energia de "Cálice". O frisson só aumentou com o telão trazendo imagens de vítimas da ditadura, casos do deputado Rubens Paiva - cuja história é retratada no filme "Ainda Estou Aqui", primeiro longa brasileiro a vencer um Oscar - e do jornalista Vladimir Herzog, ambos mortos pelo regime.
Caetano Veloso e, no fim, o próprio Gil, presos e expulsos do país pelos militares, também surgiram nas imagens. Ao fim de "Cálice", até quem estava sentado nas cadeiras se levantou para aplaudir a performance, em gritos de aclamação que preencheram o estádio.
"Back in Bahia" contemplou o exílio e o retorno ao Brasil. A ida surgiu na música, o rock que marcou aquela fase da obra de Gil, muito influenciado por Beatles e Rolling Stones em Londres, e a volta na letra, que retrata a saudade e o reencontro com o mar da Bahia sem rejeitar os anos na Europa.
Gil foi apresentando os músicos ao longo da noite. Mestrinho teve destaque no acordeon, tendo assinado também parte dos arranjos do show. Diversos familiares também acompanharam o tropicalista no palco.
A narrativa passou pela reconstrução da carreira no Brasil. "Refazenda" trouxe o reencontro com o sertão baiano de sua infância em Ituaçu, e "Refavela", o período de maior interesse pela música afro-diaspórica. Gil falou sobre como sua viagem a Lagos, na Nigéria, nos anos 1970, influenciou esse período.
Antes de fechar a trilogia "Re" com uma performance animada de "Realce", ele se dedicou ao reggae. Gil foi um dos grandes embaixadores do ritmo jamaicano no Brasil, da memorável turnê com Jimmy Cliff à tradução de sucessos de Bob Marley - caso de "Não Chores Mais", originalmente "No Woman, No Cry", com uma introdução ao pandeiro e cantada em coro pelos baianos.
Alguns dos maiores sucessos de Gil são no ritmo jamaicano, que marcaram um dos momentos mais celebrados da apresentação, ainda com "Vamos Fugir", "A Novidade" e "Extra". No palco, fica nítido como Gil sempre usou o filtro tropicalista que forjou para absorver diversas expressões musicais, de dentro e de fora de seu país. Nada que ele faz é mera reprodução, mas uma interpretação particular, levando em conta a cultura que lhe formou, do que suas antenas captaram ao longo dos anos.
Ele cantou "Punk da Periferia", sua visão do estilo que despontava no exterior e nas periferias de São Paulo na virada dos anos 1980. Mostrou também "Realce", em que deglute a disco music, numa sequência de canções que lançou naquele período, incluindo também "A Gente Precisa ver o Luar".
O violão de Gil, uma instituição da música nacional, deu as caras na fatia mais emotiva do show. Ele cantou uma versão sublime de "Se eu Quiser Falar com Deus" acompanhado de cordas e um solo de sopro, além de "Drão", "Estrela" e "Esotérico", levando às lágrimas quem ainda não tinha chorado.
A reta final foi de pura celebração, com a plateia toda de pé e dançando. Teve "Expresso 2222" e "Andar com Fé", num momento em que a energia emanada pelo público era palpável.Em "Emoriô", Russo Passapusso (BaianaSystem) engrossou o coro, seguido por encontro de ministros da Cultura de governos do presidente Lula, do PT. Gil, ex-ministro, recebeu Margareth Menezes, atual ocupante do posto, em "Toda Menina Baiana", cantada para um estádio em êxtase.
O encerramento veio depois de quase 2h30 de show. Contou com "Esperando na Janela", com os casais na plateia devidamente dançando forró, e "Aquele Abraço", a despedida na despedida, em que Gil sambou, tirou onda, puxou um coro de "Na Baixa do Sapateiro", de Caymmi, e saiu de cena agradecendo. Gil é mais que um contador de histórias - é a própria história encarnada, juntando as várias pontas de uma obra que brilha viva. Ajudou a estreia ser em Salvador, cidade que se reconhece em seus versos. Como na trajetória do tropicalista, a Bahia deu à turnê régua e compasso.