Por: Rosina Bezerra de Mello*

"O Homem da Multidão" de Edgar Allan Poe

No penúltimo artigo, no qual falei sobre o romance policial "Perseguido", fiz um breve comentário sobre o escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) e sua genialidade nos romances policiais. No entanto, sua estreia como autor ocorreu com um livro de poemas, em 1827. Poe foi pioneiro no romance policial com detetive, influenciando Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), inaugurou também a ficção científica, abrindo as portas para Júlio Verne (1828-1905). Sua obra é classificada como romântica, de estilo gótico, sombria cujo tema central é a morte e seu poema mais famoso é "O corvo", de 1845. Com personalidade controversa, vida difícil, ele transitou por diferentes gêneros e estilos como poesia, teatro, crítica literária, romance policial, conto psicológico, cosmologia (1848), com a obra "Eureka: Um poema em prosa", no qual propôs uma teoria cosmológica, prevendo a teoria do Big Bang oitenta anos antes do seu surgimento. Em o "Escaravelho de ouro" inovou com um romance com enigmas criptografados (1843). Sua obra foi traduzida para o francês por Charles Baudelaire. Poe era tão elogiado quanto criticado. Neste artigo, trago um conto psicológico que dialoga com o estilo do nosso Machado de Assis em sua famosa obra "Dom Casmurro", tema para um próximo artigo.

O conto "O homem da multidão", de Edgar Allan Poe, publicado em 1840, marcou o início da discussão sobre temas persistentes até hoje: a identidade, o indivíduo, a cidade, a multidão e as massas.

O contexto social de meados do século XIX era marcado pela intensa industrialização da Europa, pelo fim das relações sociais mais próximas e profundas comuns nas aldeias e vilarejos, pelo advento dos grandes centros comerciais e industriais e pela consequente perda da territorialidade, da identidade e do sentimento de pertença. Vale lembrar que as pessoas recebiam como identificação o nome da localidade a que pertenciam, por exemplo, Jesus de Nazaré, Francisco de Assis, Antônio de Lisboa, e tantos outros. Nos centros urbanos, as pessoas passaram a conviver com o anonimato, fato a que não estavam acostumadas, pois nos vilarejos todos se conheciam. Até o advento dos "tempos modernos", a identidade das pessoas tinha relação direta e íntima com o território, com sua sobrevivência, com o grupo social, bem como sua função nesse espaço físico, social e psicológico. Os grandes centros que se formaram rapidamente deslocaram o homem de seu espaço social e geográfico, desorientando-o e deixando-o perdido, confuso, com crise de identidade e de pertencimento. É exatamente esse estranhamento que Poe retrata com excelência no seu conto.

O conto apresenta um narrador protagonista anônimo que, sentado num café londrino durante uma tarde de outono, recém recuperado de uma enfermidade não detalhada, observa, pela janela, a paisagem e percebe-se fascinado com o povo desfigurado trafegando pela rua, descobre-se filosofando sobre a solidão das pessoas, ainda que estivessem todas juntas na multidão. Entre todos os transeuntes, um rosto chama sua atenção pelo ar misterioso. O narrador decide, então, sair do café e segui-lo dentro da multidão. A aventura do narrador, agora detetive, tem como objetivo decifrar o enigmático senhor em sua caminhada solitária pelas ruas de Londres, revelando a natureza isolada do indivíduo na cidade grande e a desorientação, pois o idoso não tinha destino, apenas vagava pelas ruas londrinas. Enquanto persegue o senhor, o narrador tenta decifrá-lo pelas suas vestimentas, quer identificar o seu local de pertencimento, suas raízes, sua idade, nome, traços comportamentais, status social, enfim, quer conhecer o indivíduo na multidão. Ao final de sua investigação, após horas, até o amanhecer, o narrador se vê diante do tal senhor, disfarça e segue seu caminho como se nada houvesse acontecido. O narrador descreve o idoso como alguém que "não podia viver sem a multidão" e, ao mesmo tempo, "não conseguia interagir com ela".

Poe, ao longo da narrativa, apresenta o narrador conversando com seus pensamentos, analisando as luzes na cidade, as transformações no espaço, as alterações comportamentais das pessoas, agora indiferentes ao outro, desconhecidas, anônimas, em profundo estado de estranhamento e deslumbre pelas "novidades" da modernidade. O crescimento vertiginoso das cidades, as novas relações com o trabalho, a desorientação social causada pela perda do pertencimento, as relações pessoais mais superficiais e um constante sentimento de caos, tudo agora faz parte da cidade-palco, cenário onde toda desordem interior e exterior acontece.

O Homem da Multidão é contemporâneo. Essa característica atemporal é o que faz desse conto um clássico da Literatura universal. Demonstra a habilidade de Edgar Allan Poe em descrever as emoções, a capacidade de retratar o humano vagando sem destino delineado, representado na pessoa do idoso caminhando pelas ruas e indecifrável, uma figura que não permite a apreensão de sua singularidade, um ser impessoal. Bem diferente do homem das aldeias, dos campos, dos vilarejos, do homem de outrora.

A multidão impõe o comportamento padronizado, transforma o homem em massa, cria a impossibilidade de construção de laços profundos e duradouros, tudo é imediato, rápido, confuso e agitado, quase sufocante em seu ritmo alucinante. Charles Baudelaire em seu clássico ensaio (1863) "O Pintor da Vida Moderna", considera os tempos modernos como a vivência do transitório, a experiência do fugaz, do superficial, do efêmero. Traz a figura do "flâneur", aquele que observa a vida urbana, curioso e descompromissado, vagando pelas ruas e pela vida sem apego, sem ficar e sem estar. Tal como o idoso do conto de Poe.

O conto "O Homem da Multidão" questiona os valores essenciais humanos, principalmente, a solidão na multidão, provocada pela vida urbana na sua capacidade de moldar as ações e esvaziar as emoções humanas. O narrador pode ser considerado como alguém que busca por sentido, ou que busca por si mesmo em meio à complexidade da vida moderna.

Poe não crítica a modernidade em si. Ele questiona a incapacidade de "ver o outro" que se estabeleceu no ritmo agitado dos grandes centros urbanos, criando autômatos se esbarrando na confusão das ruas. Ele procura o sentido, o propósito, a essência do ser humano. Era isso que ele buscava identificar no homem da multidão.

*Doutora em estudos literários e professora