Lygia Bojunga, premiada escritora brasileira, em sua obra e nas suas entrevistas, gosta de ressaltar o processo por ela vivenciado para a criação de seus personagens, além de sempre enfatizar sua relação íntima com os livros, iniciada na infância. Neste artigo, proponho uma breve reflexão acerca de ser leitor, analisando a experiência vivida por Lygia Bojunga ao reler todos os seus vinte livros, já publicados, para escolher em cada um deles o trecho ou o capítulo de que mais gostaram. A viagem da escritora para o chamado "outro dos mundos" é bem interessante.
São muitas as razões que induzem o leitor atento e assíduo de Lygia Bojunga a pensar que seus personagens são reais. Também são bastantes os argumentos que podem ser elencados para sustentar essa ideia. Contudo, algumas características de suas obras, já citadas por diferentes críticos e por ela própria, correspondem ao necessário neste artigo.
Repetidas vezes, a autora compartilha com o leitor o processo de criação de suas personagens. Quase sempre, ela deixa clara a autonomia e a independência que, depois de criados, pelas (personagens) adquirem e ela (autora) parece perder o domínio sobre sua criação. Muitas vezes, como ela própria afirma, não os cria, as personagens é que se apresentam ou se revelam a ela e se impõem, desenvolvendo-as suas trajetórias, construindo suas narrativas. É, por assim dizer, uma experiência real e concreta num mundo imaginário igualmente real e concreto. A palavra literária, em Lygia Bojunga, cria um "ser", não apenas o representa. Outra característica predominante em suas obras é a constante transgressão dos limites entre o real (fatos históricos) e a fantasia (fatos ficcionais). Tal transgressão não se limita ao desenvolvimento do enredo, como mote para situar os fatos no tempo e no espaço, mas transcende para a vida das personagens e confunde a realidade por elas vivenciada com os sonhos, também por elas, experimentados.
Como experiência real e concreta que pode ser vivenciada pelo leitor de Lygia Bojunga, é possível relacionar diversas situações presentes em sua obra. Por exemplo, citam-se a presença constante da morte, da perda, da separação, da rejeição, dos medos, das inseguranças, dos diferentes tipos de abusos e violências (sexual, moral, físico e negligência), além de abrir a possibilidade para o debate de problemas sociais, resultantes da ideologia dominante à época vivida pela autora. Essa mistura entre realidade e fantasia, pode proporcionar ao seu leitor um caminho para a maturidade e para a busca da sua identidade. Outro aspecto marcante é o passeio que suas personagens fazem entre uma obra e outra. Há um permanente diálogo entre elas. Elas têm vida e uma narrativa histórica quase que biográfica. E como se isso já não bastasse, a autora criou uma casa editorial onde todas elas "habitam". Por essas razões, é possível entender a obra de Lygia Bojunga como uma obra "real".
Certa vez, questionada por um de seus pequenos leitores sobre qual dos livros escritos ela mais gosta, ou qual capítulo de um desses livros a agradara, mas, Lygia Bojunga, sem resposta para o menino, prometeu pensar no assunto. Alguns anos depois, mais precisamente em 2007, ela publicou "Dos Vinte 1", uma coletânea composta por um capítulo de cada um dos vinte livros que já haviam sido publicados. O critério de escolha, segundo a própria autora, foi o trecho lido arrancar-lhe alguma emoção: risos, lágrimas, curiosidade, entre outros.
A linguagem simbólica que habita os livros é a chave que abre o mundo das viagens fantásticas e inimagináveis. A experiência de revisitar sua própria obra a fez recordar-se também das experiências de leitora, antes de pensar em ser escritora. A literatura é a arte da palavra e também a arte de ler. A arte é um modo de ressignificação da realidade. As obras de arte proporcionam sentimentos inéditos, funcionam como metáforas, e muitas vezes catarses; representam continuidades, estimulam associações e colaboram para a reorganização da realidade, tanto do mundo interior quanto do exterior. A leitura é uma arte paralela à literatura, saber ler o mundo é tão importante quanto saber ler o texto escrito, seja ele literário ou não. Ler favorece a troca de experiências artísticas e humanas. Nesse sentido, a cultura ocidental transforma o mundo numa narrativa infinita, pois há estreita relação entre a construção de narrativas míticas ou metafóricas e a ressignificação do sofrimento humano. A linguagem literária se desenvolve, se desdobra, se reduplica a partir de si própria como exteriorização, passagem para fora (de si), afastamento, distanciamento, fratura, dispersão com relação ao sujeito/autor, que ela apaga, anula, exclui, despossuir, fazendo aparecer um espaço vazio de uma linguagem neutra, anônima: o ser da linguagem.
A tarefa realizada por Lygia Bojunga, escolher o que mais gostou de seus livros, colocou-a, de modo muito particular, a vivenciar sua 'experiência do fora', sua experiência de leitor, posicionando-se 'fora' do papel de autor, para além das obras de terceiros, porém, para dentro de sua própria obra, de seu outro universo, de seu próprio "outro dos mundos". Ela vivenciou o poder de sua linguagem, a realidade de seu 'outro dos mundos' tornando crível e experiencial as palavras. Ela compartilhou a mesma experiência de seus leitores. Ela vivenciou o apagamento do sujeito e o (re)surgimento do ser da linguagem. A linguagem duplica e reduplica o mundo, ela é em si própria, não é mais o autor quem diz, mas o ser da linguagem. Com isso, Lygia Bojunga foi capaz de ressignificar sua própria experiência de leitora, reescrever a experiência de escritora/ criadora de seus personagens e, pôde afastar-se de sua obra, tomou o devido distanciamento, anulou o sujeito/ escritor/ autor e, permitiu que, no anonimato e no espaço vazio, o ser da linguagem do seu "outro mundo" de sua obra a emocionasse e desse à luz "Dos Vinte 1".
Lygia Bojunga é, em suma, em "Dos Vinte 1", o leitor que lê, escuta, olha, se apropria, se desvia, e resiste: não assume o lugar do autor, faz de seu próprio texto o produto de uma leitura, de uma viagem mágica, construindo e reconstruindo sentidos. Permite, livremente, que o ser da linguagem de seu outro dos mundos escreva seu vigésimo primeiro livro. E finalizo com as sábias palavras de Guimarães Rosa, para quem "O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia", Grande Sertão: Veredas.
*Doutora em estudos literários e professoras