Por: Sérgio Nery*

Dez vidas e nenhuma punição: derrota não só do futebol, mas da sociedade brasileira

Incêndio ocorreu no alojamento das categorias de base | Foto: Agência Brasil

O incêndio no Ninho do Urubu, em 2019, tirou a vida de dez adolescentes entre 14 e 16 anos. Jovens atletas que sonhavam em vestir a camisa do Flamengo, o maior clube do país em receitas e um dos maiores do continente. Seis anos depois, a Justiça decidiu absolver todos os réus do processo criminal. Nenhum dirigente, engenheiro ou gestor será responsabilizado pela morte de uma dezena de meninos que dormiam em contêineres improvisados, sem alvará e em condições precárias.

A decisão causa consternação. Não apenas entre as famílias, que vivem há anos o luto sem respostas. Mas também em todos aqueles que acreditam que a vida deve estar acima do resultado esportivo, da paixão de arquibancada e das manobras jurídicas. Porque não se trata de rivalidade entre clubes, mas da dignidade humana.

O Flamengo é imenso — uma nação seguida por milhões, com glórias e títulos incontestáveis, coroada justamente a partir de 2019 por uma retomada histórica em campo. Mas, nesse episódio, virou as costas para dez de seus próprios filhos. Esses jovens não foram esquecidos pela torcida, e sim pela instituição — ou melhor, pelos homens que a comandam. Foram vítimas do improviso, da negligência e, agora, da impunidade.

É nesse ponto que cabe uma reflexão mais ampla: a indignação não pode ser seletiva. Não podemos nos revoltar apenas quando o erro ou o crime vem do rival, do opositor político, do árbitro que marcou um pênalti contra. No futebol, é comum ver jogadores, técnicos e torcedores bradando contra os recorrentes equívocos da arbitragem e do VAR, mas silenciando quando o erro lhes favorece. Na política, a lógica é a mesma: cada lado protege o seu "político de estimação", como se ele não fosse capaz de errar ou cometer abusos.

Esse comportamento contaminou também o debate público nas redes sociais sobre qualquer tema. Indignamo-nos quando convém, e nos calamos quando o nosso lado falha. No caso do Ninho do Urubu, isso não pode acontecer. O silêncio seria cúmplice. A dor das famílias, que perderam filhos, netos, irmãos, exige solidariedade coletiva. Essa derrota é de todo o futebol brasileiro. Ou melhor, de toda a sociedade.

Porque se ninguém for responsabilizado por uma tragédia como essa, que mensagem enviamos para o futuro? E se amanhã outro incêndio acontecer em outro clube, em outra modalidade, em condições semelhantes? O precedente é de tolerância com a negligência, de banalização da vida de jovens que, antes de atletas, eram crianças, cidadãos, seres humanos cheios de sonhos.

A grandeza de um clube não se mede apenas por taças, vitórias ou receitas. Isso tudo o Flamengo tem de sobra. Mede-se também pela forma como trata seus valores, seus colaboradores e funcionários, seus jovens atletas da base - pela segurança que oferece aos que defendem sua camisa. E também como lida com as suas conquistas e fracassos.

A instituição não pode ser responsabilizada pela decisão da justiça no caso. Todavia, a absolvição dos réus é o apito final que sela uma das maiores derrotas do Clube de Regatas do Flamengo. O turbulento processo para o fechamento dos acordos de indenização com as famílias das vítimas é mais um exemplo. O clube continua grande - e ainda assim fica a sensação de que poderia ser ainda maior.

O torcedor rubro-negro não tem culpa — nem pelo fogo, nem pela absolvição. Mas pode e deve se posicionar. Porque a justiça falhou, e os dirigentes se blindaram. O que resta é a consciência coletiva de que o país perdeu algo maior do que uma partida ou campeonato: perdeu dez vidas sem que ninguém fosse punido por isso.

*Colunista do Correio da Manhã