No ápice de uma crise sistêmica da saúde suplementar no Estado do Rio de Janeiro, entidades representativas de hospitais privados decidiram abandonar qualquer ambiguidade institucional e assumir publicamente uma prática gravíssima: o uso deliberado da suspensão de atendimento médico como instrumento de coerção financeira — ainda que isso implique violar decisões judiciais e colocar vidas em risco.
A Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (Feherj), presidida por Guilherme Jaccoud, e a Associação dos Hospitais do Estado do Rio de Janeiro (AHERJ), comandada por Marcus Quintella, passaram a defender abertamente a interrupção coletiva de atendimentos à Unimed-FERJ como “estratégia de negociação”.
A confissão veio sem qualquer constrangimento. Em entrevista ao jornal O Globo, o presidente da Feherj afirmou: “A Justiça tem retirado da rede a nossa única arma de negociação, que é a suspensão de atendimento.”
A frase é mais do que reveladora — é simbólica. Se a suspensão de assistência médica é uma “arma”, como admite o próprio dirigente, trata-se de uma arma contra a vida. Não dispara projéteis, mas produz dano real e concreto ao impedir o acesso a cuidados essenciais. Uma arma apontada não contra contratos ou balanços, mas contra pacientes em situação de vulnerabilidade. Uma arma incompatível com qualquer noção minimamente aceitável de ética, legalidade ou civilidade.
O paciente como instrumento de coerção
Essa chamada “arma” não atinge a operadora. Atinge o paciente. O beneficiário que paga regularmente por um plano de saúde é transformado em instrumento de pressão econômica, colocado deliberadamente em situação de risco para forçar a satisfação de interesses financeiros privados.
Suspender atendimento em bloco não é negociação. É abuso de direito. É prática coercitiva vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, pela Lei dos Planos de Saúde e pela própria Constituição. O paciente, que deveria ser o centro do sistema, é conscientemente sacrificado.
Créditos unilaterais e tentativa de fura-fila
O cenário se agrava quando se analisa a natureza dos valores que se busca cobrar. Em inúmeros casos, os chamados “créditos” decorrem de títulos emitidos unilateralmente pelos próprios hospitais, sem auditoria da operadora, sem validação técnica independente e, frequentemente, sem lastro contratual inequívoco.
Esses valores são protestados e apresentados como dívidas líquidas e exigíveis, enquanto se tenta impor o pagamento por meio da ameaça de suspensão assistencial — justamente no contexto de reorganização da Unimed-FERJ, herdada do colapso da antiga Unimed-Rio, sob acompanhamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O objetivo é claro: criar um privilégio artificial, furar a fila dos credores e impor preferência à força, utilizando o consumidor como escudo.
Quando a desobediência judicial encontra mandato parlamentar
O ponto mais alarmante é o descumprimento reiterado de decisões judiciais. Há registros de hospitais que mantiveram restrições ou negativas de atendimento mesmo após ordens expressas determinando a continuidade da assistência.
O caso da Rede Casa é emblemático. A instituição é ligada ao deputado federal Mário Heringer (PDT-MG). Não se trata, portanto, de um agente privado qualquer, mas de um parlamentar da República, investido de mandato popular para legislar, fiscalizar e defender o interesse público.
Ainda assim, a rede persistiu na restrição de atendimentos mesmo diante de decisão judicial clara, obrigando o Judiciário a impor multa diária de R$ 300 mil pelo descumprimento da ordem.
Aqui, a contradição deixa de ser apenas retórica e se torna institucionalmente escandalosa: um representante do Poder Legislativo associado a uma conduta que desafia a autoridade judicial, despreza ordens do Estado e expõe pacientes a risco real e imediato. Trata-se de um comportamento incompatível não apenas com a função parlamentar, mas com os mínimos padrões de moralidade pública exigidos de qualquer agente político.
Nesse ponto, a crise deixa de ser apenas contratual ou econômica. Passa a ser institucional, moral e ética.
Quando a saúde é tratada como arma, o paciente como refém e a desobediência judicial como método, não há mais espaço para ambiguidades retóricas ou justificativas técnicas. O que se revela é a ruptura consciente de limites mínimos de responsabilidade pública e privada.
Num sistema já em colapso, essa conduta não apenas aprofunda a crise da saúde suplementar no Rio de Janeiro — ela corrói os fundamentos éticos, jurídicos e humanos do próprio direito à vida. E o preço, como sempre, não é pago por quem empunha a “arma”, mas por quem está indefeso diante dela.