Vencedor do Festival de Cannes e um dos favoritos para o Oscar, o iraniano "Foi apenas um acidente", de Jafar Panahi, mostra como a tortura marca e deforma a vida de suas vítimas.
O mote é simples: um ex-preso pela ditadura dos aiatolás crê ter reencontrado seu torturador, o sequestra e decide matá-lo. Mas, em dúvida sobre sua identidade, recorre a outras vítimas do mesmo algoz para ter certeza de que não cometeria uma injustiça.
Vanid (Vahid Mobasseri), o protagonista, e seus parceiros recordam o que passaram nos porões do regime e se veem diante de uma questão ética: deveriam agir da mesma forma que seus algozes? Poderiam matar ou mesmo torturar o sujeito que, supostamente, fora responsável por tantos sofrimentos, que marcariam e, mesmo, destruiriam suas vidas? Até que ponto a vingança não os igualaria aos homens desprezíveis que lhe impuseram tamanhas dores?
Ao longo do filme, os espectadores são transformados em personagens, em integrantes daquele tribunal improvisado e capenga — o que faríamos diante de algo assim? O impasse criado pela decisão de Vanid de aprisionar aquele que o teria torturado gera uma nova questão: caso fosse libertado, ele poderia se vingar de seus sequestradores.
(O jornalista Cid Benjamin agiu de maneira diferente. Preso e exilado pela ditadura, ele, em 1989, encontrou com um de seus torturadores no banheiro do bar Amarelinho, na Cinelândia. "Ele me viu, se assustou e eu disse: 'Está lembrado de mim, Timóteo? Eu sou o Cid'".)
Panahi, que foi preso algumas vezes, consegue equilibrar a dureza do tema com momentos de humor. A saga dos ex-torturados na van que transporta o suspeito pelas ruas da cidade chega a remeter a um road movie, as atribulações ocorridas no veículo são tantas que lembram momentos do engraçadíssimo "A pequena miss Sunshine".
Há também uma alternância de momentos puramente cinematográficos — o ruído que permite a Vanid identificar o torturador — com outros de viés teatral, como a discussão sobre o que fazer com o preso. Aqui, o cenário (o deserto) reforça a ausência de referências, seria preciso que os personagens inventassem uma saída.
Proibido de filmar em seu país, Panahi gravou "Foi apenas um acidente" de forma clandestina, o que ajuda a explicar a opção por um roteiro que usa diferentes cenários, ligados pela movimentação da van. A necessidade de fugir da vigilância gerou consequências estéticas, ditou a lógica do filme.
"Foi apenas um acidente" poderia ter sido rodado em diversos outros países, inclusive no Brasil, uma sociedade criada com base na escravidão, que desde seus primórdios aprendeu a naturalizar e a deixar impune a tortura.
Como demonstrou a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, parte significativa dos brasileiros inclui a aplicação de sevícias a prisioneiros no rol de punições aceitáveis. Ao reduzir penas dos que queriam implantar uma nova ditadura, o Congresso mostrou ser parceiro da brutalidade.
Muitos por aqui tratam o tema do ponto de vista do algoz, responsabilizam a vítima (aquela história do "Mas o que ele fez para merecer isso?", como se houvesse como justificar espancamento, aplicação de choques elétricos em partes genitais, estupro, empalamento e a prática de se pendurar alguém de cabeça para baixo).
Ao falar de impasses provocados pela tortura e da não punição institucional de torturadores, o filme trata da relação das sociedades com a barbárie — e, assim, a tela funciona também como espelho.