Ao proibirem a aplicação de cotas raciais em instituções estaduais de ensino superior, deputados de Santa Catarina se esqueceram, de maneira conveniente, que boa parte de seus antepassados foi privilegiada por cotas — eles tiveram direito de receber terras do governo brasileiro. Um benefício que jamais foi concedido aos negros escravizados cujos descendentes, agora, estão ameaçados por outra injustiça.
Uma olhada nos sobrenomes dos 40 deputados estaduais catarinenses mostra que pelo menos 21 têm sobrenomes alemães ou italianos (como o meu, por sinal): 13 estão entre os 24 que votaram a favor do projeto.
O Brasil que consta como sobrenome político do parlamentar do PL autor da proposta é postiço — ele ao nascer foi registrado como Alexander Alves Pereira. Contrária à proposta, a deputada Paulinha (Podemos), ressaltou, na votação, que na Assembleia Legislativa de Santa Catarina não há nenhum deptuado negro.
A entrega de pedaços do território brasileiro a estrangeiros brancos que aqui se dispusessem a trabalhar como agricultores vem desde 1808, quando D. João VI transferiu a sede do reino português para o Rio de Janeiro.
Em 1814, em plena vigência da escravidão, o rei formalizou o convite para que estrangeiros viessem para ao Brasil. Um decreto de 1820 definiu que o governo doaria para cada família 160.000 braças quadradas de terras, cavalos, vacas, bois, além de um terreno para a comunidade e área para a edificação de uma cidade — é o que diz o site da prefeitura de Águas Mornas (SC), cidade de forte influência alemã.
As províncias do Sul foram as que mais recorreram à mão de obra imigrante, especialmente, Santa Catarina. Em 15 de junho de 1836, o governo provincial publicou lei que incentivava a colonização, inclusive por estrangeiros. Foi o que permitiu a colonização italiana na Freguesia de São João do Alto Tijucas, hoje município de São João Batista.
A generosidade com terras alheias (pertenciam a indígenas) foi tanta que, no ano seguinte, o governo imperial sustou a promoção dessas iniciativas de colonização/invasão. Isso, porque a Assembleia Provincial de Santa Catarina exagerara na dose das concessões. É isso mesmo: o legislativo que agora aprova lei que prejudica pretos e negros foi ao mesmo que distribuiu em excesso terras e benesses para os brancos. Neste ponto, suas excelências não podem ser acusadas de traírem a história, honram a discriminação cometida por seus antecessores.
Aprovada com votos da direita — principalmente, do PL — a proposta deverá ser declarada inconstitucional. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação fo DEM (antes, PFL; hoje, União Brasil) contra as cotas.
Mas o projeto, aprovado por 24 votos a sete, é importante por mostrar a permanência do racismo institucional que, mais uma vez, veste a fantasia de defesa de valores como impessoalidade e da meritocracia para defender privilégios que atravessam gerações. Deputados herdeiros de beneficiados por cotas tratam de impedir qualquer tipo de concorrência, barram um mínimo de reparação histórica.
Renovam também a intenção de representantes do agronegócio do fim do século XIX que queriam ser indenizados pelo fim da escravidão: afinal, não eram mais donos daqueles seres humanos, esta propriedade indecente lhes fora confiscada. O Brasil — ainda que colocado artificialmente no sobrenome do tal deputado — não cansa de mostrar sua cara.