Por: Fernando Molica

Olha o Neguinho aí, gente!

Ao longo da série, Neguinho não deixa de sorrir | Foto: Carolina Oliveira/Divulgação/Globo

A série de quatro episódios sobre Neguinho da Beija-Flor (Globoplay) é uma das melhores abordagens recentes do universo do samba, em particular do das escolas de samba, mundo tão venerado quanto desconhecido, alvo de generalizações e de preconceito.

Dirigida por Jorge Espírito Santo e roteirizada pelo jornalista e escritor Aydano André Motta, "Neguinho da Beija-Flor: Soberano da Avenida" usa no título uma referência ao samba-exaltação composto pelo biografado para homenagear "o" Beija-Flor.

Não faz tanto tempo, o patrono da escola, o bicheiro Aniz Abrão David, o Anísio, só usava o artigo masculino, referência ao bloco que deu origem à agremiação. Foi o carnavalesco Joãosinho Trinta que insistiu para Neguinho trocar o "o" pelo "a", o masculino pelo feminino. Outro acerto desse gênio da cultura e das artes brasileiras.

O intérprete que este ano se aposentou da Avenida passou por muitas dificuldades — era conhecido como Neguinho da Vala, de tanto que ia numa delas, em Nova Iguaçu (RJ), para tentar pescar/caçar o que comer.

Quando brigaram com o pai, ele e o irmão Nego — outro que viraria figura carimbada nos carros de som das escolas — foram morar num lugar que, até a véspera, servia de chiqueiro numa casa. Ao ser passado na faca, o porco abriu vaga no terreno.

Seu início de carreira foi cheio de dificuldades, sabe aquela história de trocar um show por um prato de comida? Pois é. O intérprete do Leão de Nova Iguaçu, bloco que virou escola, foi caçado por Anísio e foi cantar outros bichos em Nilópolis: os 25 que integravam o enredo campeão de 1976 em homenagem ao jogo criado pelo Barão de Drummond.

Neguinho ainda compôs, sozinho, o samba que embalou o primeiro título da Beija-Flor — em todo esse tempo, acredite, ele foi o único intérprete da escola.

Como frisa sua filha Ângela Caroline, Neguinho não guarda mágoas nem amarguras do passado, dos tempos de miséria. Seu sorriso claro e aberto, que tão bem dialoga o tempo todo com a pele escura, daria a ele o direito de usar o mesmo sobrenome artístico da porta-bandeira Selminha, outra gigante. Mas, num determinado momento, ele desaba ao lembrar que morou num chiqueiro.

A série acerta ao deixar que os sambistas contem suas histórias, usem seus pontos de vista para avaliar as delicadas relações de um meio que abrigou perseguidos de várias origens e propósitos. Neste ponto, não deixa de ressatar o tema do racismo. E é divertidissíma ao narrar a história da gota d'água para o fim do primeiro casamento do cantor e compositor.

Enciumada, irritada com a movimentada vida pregressa do marido, sua então mulher fez pressão para ele não gravar "Mulheres", que lhe fora oferecida em casa pelo compositor Toninho Geraes.

Ela não gostou nada daquela parada de "Já tive mulheres de todas as cores/ De várias idades, de muitos amores". Martinho da Vila se deu bem, e pegou mais uma — no caso, uma canção de sucesso. Neguinho fez as trouxas, e partiu.

O documentário ressalta o lado compositor de Neguinho, a faceta artística que ele prefere exercer (o cara, acredite, não gosta muito da própria voz).

E, mais do que tudo, mostra os desafios, os sonhos, as alegrias, os tropeços e os golaços do autor do samba que até hoje embala torcidas no Maracanã e em outros estádios — e o nome dele são vocês que vão dizer.