Por: Fernando Molica

As bênçãos de Ana Maria Gonçalves

Ana Maria Gonçalves, primeira mulher negra a integrar a ABL | Foto: Dani Paiva/Divulgação

Ao iniciar seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras com pedidos de bênçãos aos seus pais, a escritora Ana Maria Gonçalves, primeira mulher negra a entrar na instituição, criou um fato ao mesmo tempo político e estético.

A decisão de priorizar seu pai e sua mãe transformou o Petit Trianon em quintal, em varanda de casa perfumada pelo cheiro de frango com quiabo feito no fogão de lenha. Reiterou a ancestralidade que conduz seu romance "Um defeito de cor" (Record), enfatizou um princípio fundamental nas religiões afro-brasileiras.

Reforçou assim a ideia do respeito e da devoção aos que vieram antes — ao citar, depois, parentes mais novos, ela apontou para a continuidade, para as idas, vindas e trocas entre passado, presente e futuro.

A escolha também dialogou com uma característica fundamental da ABL: o culto aos antecessores é o que explica a ideia de imortalidade concedida aos que passam a integrar seus quadros. São imortais porque seus nomes sempre serão lembrados em cerimônias de posse e em datas como aniversários de nascimento e de morte.

Ao enfatizar a ligação entre memória e vida, a ABL toma um chá com tradições religiosas e culturais vindas da África, descobre ter muito em comum com elas. Ambas encaram a memória como algo vivo, presente, essencial para a construção do futuro.

A presença de Ana Maria na ABL é, por si só, exemplo e potência desse processo histórico que mistura os tempos. Cometeria um erro quem ousasse dizer que Kehinde, protagonista do romance, está morta.

Outro dia mesmo, ela apareceu chorando um filho morto no Complexo do Alemão, aos pés da Igreja de Nossa Senhora da Penha; na sexta, vestiu o fardão que suas mãos costuraram no ateliê da Portela; nos corpos de outras mulheres, participou da festa no terreiro de Machado de Assis que comemorou a posse de todas elas.

A maioria de negros entre os convidados frisou a mudança num país que, com todas as suas mazelas, vê as cortinas do passado sendo abertas, escancaradas para um futuro inevitável e inclusivo.

Observador privilegiado dos fatos, sentado no centro da área externa da instituição que fundou, nosso maior escritor, negro, certamente adorou a presença de tantos dos seus por ali, ao seu lado.

A escritora foi empossada dias depois de o IBGE revelar que seus prenomes são os que mais identificam as mulheres brasileiras; mais do que uma coincidência é uma reafirmação da lógica coletiva que a levou para a ABL, de uma pluralidade que, mais do que representar, ela incorpora e passa adiante — em pretuguês, na  oralitura e com base na escrevivência, como destacou em seu discurso.

Como no samba de Mangueira que cita Luísa Mahin (Kehinde), Brasil chegou a vez de ler e ouvir as Anas, Marias, Lélias, Ledas e Conceições. Mais do que nunca, precisamos nos descobrir e nos reencontrar: a bênção, Ana Maria; axé, saravá.