Por: Fernando Molica

A bíblica falta do que fazer

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) presidiu sessão que debateu a regulamentação do texto da Bíblia | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

É quase inacreditável, mas, no último dia 30, senadores perderam seu sagrado tempo para discutir projeto que estabelece uma versão oficial da Bíblia. Pior: a proposta, de autoria do deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), foi aprovada pela Câmara em 23 de novembro de 2022, quando o país era revirado por pregações golpistas.

A votação foi simbólica — aquela na base do quem está a favor, permaneça como está —, mas vale do mesmo jeito. Na sessão, apenas o Novo, o Psol e a Rede encaminharam contra a aprovação de algo absurdo, que prevê normatização de um texto que, por diversos fatores históricos e religiosos, e pelo caráter laico do Estado, não pode ter versão oficial.

O texto que vingou no plenário, baseado no relatório do deputado Eli Borges (PL-TO) estabelece: "Art. 1º Fica vedada qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento, em seus capítulos e versículos, garantida a pregação do seu conteúdo em todo o território nacional." Borges também apresentou os relatórios das comissões de Cultura e de Constituição e Justiça.

Como foi frisou, no Senado, o pastor luterano Rudolf Eduard von Sinner, professor de teologia de uma universidade católica (a PUC do Paraná), é impossível se estabelecer um texto oficial do livro considerado sagrado por cristãos, espíritas e, no caso do Velho Testamento, também por judeus. Muçulmanos também adotam parte do que lá está escrito.

Ele destacou que a Bíblia católica, por se basear na tradução do grego, tem 73 livros; a protestante, que tem como base a versão em hebraico, 66. Ainda ressaltou que algumas traduções ortodoxas no Oriente adotaram outros livros canônicos, o que elevou o total para 81. 

Contrário ao projeto, Von Sinner destacou o óbvio, a brigalhada que seria para definir qual a versão que deveria ser abençoada pelo Estado brasileiro, algo que iria acentuar de vez divergências religiosas e acabaria nas mãos dos cardeais do Supremo Tribunal Federal. Seria, afirmou, um "efetivo embaraçamento do funcionamento de cultos religiosos e igrejas" e promoveria a "a ingerência inconstitucional do Estado em assuntos de religião".

O pastor e professor é especialista no tema, mas bastaria um mínimo de bom senso para avaliar que a proposta é insana, autoritária, desnecessária e, até, perigosa. Além de meter o Estado onde este não deve entrar, reitera a ideia de que uma determinada crença deve ser canonizada e adotada, a ponto de requerer normatização oficial.

Ao vedar "alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada", a insanidade cometida pelo Pastor Sargento Isidório, respaldada por Eli Borges e admitida pelos deputados tem o poder de, por exemplo, vedar a Torá, que corresponde a cinco livros do Antigo Testamento. O texto poderia ser visto como uma forma de supressão da Bíblia.

Adaptações bíblicas para o público infantil também seriam vetadas. A proposta chega a vincular o Estado ao cristianismo, ao dizer que será "garantida" a pregação da Bíblia em todo o território nacional.

O crescimento do eleitorado evangélico tem criado distorções oportunistas na política. A mais grave, por sua amplitude, é uma sacralização institucional de algo que deveria ficar restrito à consciência de cada um. O fato de a grande maioria da população ser cristã não implica transformar a crença em verdade a ser seguida por todos.

Fora que a entronização da Bíblia sem levar em conta seu contexto social e histórico é capaz santificar a escravidão: "Escravos, obedecei aos vossos senhores deste mundo com temor e tremor, de coração simples, como a Cristo (...)" (Efésios, 6,5).

Assim como foi feito no caso da PEC da Impunidade, cabe ao comando do Senado arquivar logo esse projeto, o país tem problemas de verdade para enfrentar.