Por mais delicada que aparente ser do ponto de vista eleitoral, a fala em que o presidente Lula (PT) classificou de "matança" a recente megaoperação da PM em favelas cariocas colabora para uma definição de campos.
Política tem a ver com busca de consensos, mas também — e principalmente — com exposição de divergências; estas, base da democracia. Radicalizada com a evolução das pesquisas e com o uso de microdados das redes sociais, a busca de preenchimento de expectativas do eleitor havia gerado uma espécie de padronização do discurso político.
A ascensão internacional da extrema-direita criou diversos problemas para o processo democrático, mas, pelo menos, ajudou a clarear diferenças ideológicas — uns pra cá; outros pra lá. Prestes a ir para a cadeia, Jair Bolsonaro foi condenado por diversos crimes, pode ser acusado de vários outros, mas nunca negou ser quem é e o que pensa.
Durante anos, isolado na Câmara dos Deputados, insistiu na defesa da ditadura, da tortura, ironizou famílias que buscavam restos mortais de vítimas dos militares, cometeu frases inacreditáveis sobre mulheres, homossexuais e negros.
Remou de maneira furiosa contra a maré dominante em tempos de redemocratização e de entendimento de papéis sociais de grupos que buscavam marcar sua identidade. Uma postura que, como ele mesmo admitiria em entrevista a Jô Soares, fazia com que fosse conhecido.
A mudança de ventos estimulada pela Lava Jato — catapultada pelas redes sociais e consolidada pela prisão de Lula — o colocou em lugar privilegiado na disputa presidencial de 2018. Candidato, fez o contrário do que determinam os manuais de marquetagem política, chegou ao ponto de radicalizar seu discurso na disputa do segundo turno.
Em 2022, até para conseguir forjar uma frente contra o bolsonarismo, Lula procurou radicalizar no discurso de paz e amor, buscou ocupar o espaço mais ao centro, saiu em busca do eleitor que não se identifica com a esquerda ou com a direita, ora vai mais para um lado, ora para o outro. Vota em quem considera ser melhor naquele momento.
Não ser nem isso nem aquilo é algo complicado; muitas vezes, sinal de covardia. Posturas mais radicais tendem a causar problemas, ainda mais em temas que geram polarização, como o combate à criminalidade. Mas não dá para ficar no muro, negar mais do que afirmar. Quando começaram a ser implantadas, cotas raciais geraram muita oposição; o PFL — que virou Democratas, que se juntou ao PSL para formar o União Brasil — foi ao Supremo Tribunal Federal contra a adoção do critério pela Universidade de Brasília.
A ação foi derrotada e, ao longo dos anos, a política de cotas avançou e se constitui num dos poucos caminhos de mudança na estrutura da sociedade brasielira. Uma conquista que só se viabilizou depois de muitas conversas, depois de quase infindáveis debates.
Há temas que exigem mais cuidado, como o aborto: o número de casos de interrupção voluntária de gestações, as pouquíssimas condenações de mulheres que recorrem à prática e as reiteradas pesquisas que indicam a reprovação à descriminalização da prática mostram que a grande maioria da população é a favor do aborto ilegal, algo que preserve as aparências.
O medo nosso de cada dia e o avanço de organizações criminosas favorecem o apoio a medidas radicais, como a operação que terminou com mais de cem mortes. Mas um governo que se diz de esquerda não pode achar que esse é o melhor caminho para o combate à violência — tem que dizer qual sua alternativa e provar sua viabilidade.
Recém-eleito prefeito de Nova York, Zohran Mamdani, do Partido Democrata, indicou um caminho. Em discurso após confirmada sua vitória, ressaltou ser mulçumano e socialista — e se recusa a pedir desculpas por ser quem é.