Não é razoável a ideia de que moradores de favelas seriam uma espécie de subcidadãos, obrigados a conviver com o domínio de traficantes e/ou de milicianos e com frequentes tiroteios: conflitos gerados por disputas entre quadrilhas ou entre estas e a polícia. Mas é assim que banda toca há, pelo menos, 40 anos.
E tem sido com base neste princípio de Fla X Flu (ou de Fla e Flu), da necessidade de se quebrar ovos para fazer omeletes, que muita gente tem justificado a operação deflagrada pelo governo do Estado nos complexos do Alemão e da Penha, os confrontos e as mortes seriam, assim, inevitáveis. Durma-se com o barulho dos tiros; acorde-se com os cadáveres à porta.
O problema dessa lógica é que não estamos falando de ovos, mas de seres humanos. Pessoas que, como qualquer um de nós, têm o direito de dormirem tranquilas, de irem e virem, de andarem por seus bairros, de frenquentarem escolas, de buscarem postos de saúde.
A incursão da semana passada gerou 121 mortos —entre eles, quatro policiais —, feridos e apreensão de muitas armas, entre elas, fuzis. Mas o Comando Vermelho continua a mandar nas favelas do Alemão e da Penha; essas áreas, alvo da chamada megaoperação não foram reintegradas à vida da cidade.
Na quinta passada, em entrevista à CBN, uma repórter do jornal O Globo que fora ao local do principal confronto para acompanhar a retirada de corpos, disse que, na descida, viu homens armados com fuzis — eles não eram policiais.
Em 2008, o jornal O DIA revelou o início de uma outra estratégia de atuação em favelas. Assim como ocorre na cidade, digamos, formal, a polícia deixaria de entrar e sair de comunidades, passaria a ficar por lá. As UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, prometiam fazer o óbvio, promover um policiamento regular e permanente.
A polícia, afinal, não entra no Leblon ou Ipanema (ou na Tijuca ou no Méier) pelo simples motivo de que não sai desses bairros — o mesmo processo seria implantado em favelas.
Em nenhum momento o projeto das UPPs falou em acabar com o tráfico de drogas. A compra e venda de substâncias ilegais existe no mundo inteiro, nas cidades mais organizadas, desenvolvidas, inclusive nas mais pacíficas (ou alguém aí acha que não há tráfico em Estocolmo ou Genebra?). Os Estados Unidos são, de longe, o maior mercado consumidor dessas drogas; e por lá não acontecem batalhas como as cariocas.
A grande questão é que, por aqui, o tráfico acabou associado a domínio territorial, o que evoluiu para a conquista e defesa de áreas desde sempre jogadas pra escanteio pelos poderes públicos. É difícil para um carioca acreditar, mas vale repetir: venda ilegal de drogas associada a domínio territorial é coisa nossa. Isso não existia nem mesmo em Medellín, ex-capital mundial do tráfico pra lá de pesado, medido em toneladas, não em gramas.
O senso comum é de que as UPPs naufragaram por excesso de ambição política. Na ânsia de conquistar votos, o governo estadual espalhou diversas dessas unidades pelo estado, sem que houvesse estrutura, orçamento e planejamento adequados (algo que, por exemplo, impedisse a migração de criminosos para outras regiões).
Isso ocorreu, mas as UPPs acabaram também porque deram certo. Sua permanência ameaçava uma estrutura de poder e de faturamento construída durante décadas, máquina azeitada que gera lucros para criminosos e para muita gente no aparelho estatal.
A experiência, porém, quebrou o paradigma de que favelas eram território impossível de ser reconquistado; diferentemente do que houve na terça passada, dezenas de comunidades foram reincorporadas à cidade na época das UPPs; isto, sem mortes ou tiroreios. O caminho existe.