As organizações criminosas não teriam acumulado tanto poder se, ao longo das décadas, não tivessem constituído PPPs — Parcerias Público-Privadas — com setores importantes do Estado (com maiúscula, para remeter a diversas instâncias).
Não é razoável que, sem uma rede de apoio incrustrada na máquina estatal, organizações nascidas na pobreza de favelas, cortiços e presídios, formadas majoritariamente por pessoas pobres, de baixa instrução, conseguissem dominar vastos territórios de cidades como o Rio, importar armas e implantar uma logística que lhes garantisse fornecimento regular de drogas e de munição.
Basta olhar os perfis dos integrantes dessas organizações. São, quase todos, incapazes de sobreviver sem a rede de apoio criadas em áreas pobres das cidades, sequer saberiam como pegar um ônibus que os levasse ao Paraguai, país que, antes da liberação do comércio feita por Jair Bolsonaro, era referência no fornecimento de armas para quadrilhas.
Procure lembrar das muitas imagens de presos acusados de tráfico de drogas em favelas do Rio, aqueles homens muitas vezes descalços, de chinelos de dedo: alguém é capaz de achar que um deles seria capaz de pegar um avião e ir pra Miami (ou Caracas, ou Bogotá) para discutir fornecimento de drogas?
Com as exceções de sempre — olha a meritocracia aí, gente —, eles nunca precisaram viajar para obter os instrumentos necessários às suas atividade criminosas, tudo sempre chegou às suas mãos, muitas vezes, em carros de corporações policiais encarregadas de combatê-los. Assim chegaram até armas usadas também para matar policiais.
Varejistas das drogas, eles, em tese, nem poderiam ser chamados de traficantes; não praticavam o tráfico em si, não importavam grandes quantidades de maconha e cocaína, apenas atuavam na ponta do negócio, como camelôs de mercadorias ilegais.
Longe de tentar negar que pratiquem crimes terríveis, a atuação nesse tipo de comércio requer armas, uso e abuso de violência, matar é praticamente uma obrigação. O que não dá para achar é que os chamados bandidos pés-de-chinelo seriam capazes de, sem as PPPs, conseguirem montar a estrutura de que dispõem hoje.
Formadas majoritariamente por homens e mulheres vindos de universidades, pessoas capazes de dissertarem horas sobre teorias revolucionárias, as organizações de esquerda que tentaram implantar processos guerrilheiros durante a ditadura não chegaram a dominar um metro quadrado do território nacional. A guerrilha do Araguaia não passou de uma tentativa que seria sufocada pelo Exército e seus torturadores.
Como, então, os criminosos que atuam no país seriam capazes de dominar tantas áreas sem que houvesse diferentes graus de parceria com agentes estatais? Uma associação que, de tempos para cá, vai muito além da corrupção policial. Outro dia, um deputado fluminense foi preso, acusado de ser o grande fornecedor de armas do CV. A recente operação que apontou para o braço empresarial do PCC, revelou o comprometimento que há por trás daqueles coletes da Faria Lima.
Como imaginar que boa parte da política brasileira — ancorada, muitas vezes, em lideranças que controlam territórios eleitorais — não teria alianças com o que o Rio aprendeu a chamar de donos de determinados locais? Nem é preciso seguir o dinheiro, basta prestar atenção à trilha dos votos que são despejados em áreas dominadas por traficantes e/ou milicianos (as joint ventures entre eles andam bombando). Há políticos que podem e os que não podem fazer campanha em áreas de circulação restrita — como diria Leonel Brizola, algo há.
Vale insistir que não pode negar o crime que é praticado por aí, mas não dá para achar que tanto poder cresceu sem ajuda importante. Como boa parte da elite nacional, os traficantes não sabem viver sem o Estado.