Por: Fernando Molica

Milhares de operações não acabaram com tráfico

Operação nos complexos do Alemão e da Penha ocorreu na terça passada | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Desde junho de 2020, a polícia declarou ao Ministério Público a realização de mais de 5.500 operações em centenas de favelas do Estado do Rio — o crime, em particular a venda de drogas, não acabou em  qualquer uma delas. É razoável prever que a situação vai se repetir nos complexos do Alemão e da Penha, alvos da megaoperação de anteontem.

Como mostrou a coluna Correio Bastidores, pelo menos 88 dessas incursões ocorreram, nos últimos cinco anos, em comunidades desses dois complexos na Zona Norte. Tantas mobilizações não impediram que o Comando Vermelho, de acordo com autoridades fluminensens, instalasse nessas favelas um grande centro de operações, nelas reunisse centenas de armas e cúmplices.

As operações geram mortos e feridos — inclusive entre policiais —, causam pânico, e desespero, prejudicam o ir e vir da população e o funcionamento de atividades públicas e privadas. E — é forçoso admitir — não resolvem nada.

Servem mais para mostrar uma suposta disposição de enfrentamento ao crime por parte do governante de plantão, dão a agentes de segurança uma sensação de dever cumprido, aplacam a sede de vingança de setores da populaçao, geram ressentimento e ódio em moradores de favelas. E, principalmente, alimentam a corrupção — não apenas policial — e muitos negócios. Funcionam, muitas vezes, como agentes de regulação do crime.

As operações passaram a ser relatadas ao MP quando o Supremo Tribunal Federal, em meio à pandemia, decidiu, no âmbito de ADPF que buscava reduzir a letalidade policial, impor algumas restrições a operações policiais em favelas. Não proibiu sua realização, apenas determinou que só ocorressem em casos excepcionais. A excepcionalidade que marca o Rio de Janeiro serviu de pretexto para a manutenção irrestrita desse tipo de atividade policial. Em abril passado, o STF amenizou as restrições.

A listagem de incursões disponível no site do MPRJ acumulava, ontem, 343 páginas; em cada uma delas há o registro de 16 operações ocorridas entre 14 de junho de 2020 e 15 de outubro de 2025.

Além de atestarem o fracasso desse tipo de tentativa de controle da criminalidade, as páginas revelam a tragédia de um estado onde milhões de pessoas vivem em localidades de nomes que soam estranhos e distantes: Sussa, Cinco Bocas, Buraco do Boi, Sebinho, Danon, Kelson, Moran, Muquiço, Gogó da Ema, Risca Faca, Sabugo, Rebu, Vila Candosa, Sabão, Corte Oito, Alma, Buraco do Boi, JJ, Linha,  Rola, Aço, Três Pontes. 

São em locais miseráveis como esses que nascem, crescem e morrem tantos daqueles que, ainda jovens, passam a ser considerados inimigos públicos, narcorterroristas. Não se trata de negar a existência de criminosos — muitos deles, violentos e perigosos — em favelas, mas de reconhecer a ineficácia de combate focado no aspecto visível dos delitos e a óbvia relação entre desigualdades sociais e a opção por uma vida bandida.

A lógica de se focar no crime visível se justifica, entre outras razões, pelo interesse em não revelar raízes mais profundas da atividade criminosa. Investigações capazes de desvendar caminhos do dinheiro e as fontes de financiamento de atividades como tráfico de drogas e de armas têm potencial explosivo, são capazes de incomodar muita gente que vive em áreas nobres, os tais malandros candidatos a malandros federais.

É mais fácil prender ou matar quem seja visto como isolado de um contexto maior. Inimigos públicos número 1 esgotam-se em si mesmos, não tem cúmplices em atividades empresariais nem protetores na máquina estatal. Como Judas de Sábados de Aleluia, prestam-se bem ao papel de responsáveis solitários pelas tragédias e malvadezas — sua malhação gera alívio para a sociedade, e, principalmente, para seus sócios.