Mais do que apoiar Javier Milei — cuja popularidade não para de cair —, o eleitorado argentino indicou não querer a volta do peronismo: não votou a favor do presidente, mas, principalmente, contra seu adversário mais óbvio.
Um comportamento que remete a uma velha piada do canto lírico: vaiado pelo público, um tenor desafinado se dirige à plateia e avisa, irônico: "Não gostaram? Esperem pelo barítono...". A Argentina demonstrou que conhece bem e rejeita o cantor que se preparava para entrar em cena.
Dados da pesquisa AtlasIntel, divulgada na sexta-feira passadam, ajudam a entender o resultado eleitoral. A imagem de Milei era negativa para 55% dos pesquisados; a positiva, de 42%. Mas este último percentual era um pouco superior aos 40% do peronista Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires, e aos 36% da ex-presidente Cristina Kirchner, que está em prisão domiciliar. Segundo a pesquisa, 52% tinham imagem negativa de Kicillof; 57%, de Cristina.
A comparação da pesquisa com as urnas revela que o desgaste do presidente gerado pelas consequências sociais de sua política econômica ainda não parece ter sido suficiente para fazer com que a maioria do eleitorado superasse o trauma deixado por administrações anteriores. Na dúvida, eleitor deu um crédito ao presidente de um país que, segundo Donald Trump, não tem nada e luta para não morrer.
O exemplo argentino ajuda a entender movimentos do eleitorado brasileiro igualmente medidos por pesquisas. De acordo com o mesmo AtlasIntel, apenas neste mês de outubro a aprovação do governo Lula voltou a superar a desaprovação — ele estava no vermelho desde dezembro do ano passado.
Em janeiro, quando ganhou corpo a história de que haveria cobrança de impostos para transações com Pix, a aprovação do governo caiu ainda mais e subiram as intenções de voto no já inelegível Jair Bolsonaro. Mas em julho, o presidente voltou a liderar as pesquisas, ainda que estivesse no vermelho no quesito popularidade.
Ou seja: é claro que a popularidade de um governante se reflete nas intenções de voto. Mas, para o cidadão comum, não identificado com correntes políticas, eleição nem sempre se trata da escolha de um candidato perfeito, mas daquele que ele considera melhor — ou menos pior — que os demais. E foi isso que a maioria dos argentinos disse anteontem nas urnas — melhor o tenor novo que o barítono velho de guerra.
O recado vindo do sul mostra também que a direita está viva, serve de alerta para um setor da esquerda que insiste em rejeitar qualquer tipo de reforma do Estado brasileiro. Muito do desgaste peronista vem do cansaço com a ocupação da máquina pública, a concessão de benesses que se mostraram impagáveis.
O aviso deveria incomodar setores da máquina estatal brasileira — como o Judiciário, Ministério Público e Forças Armadas — que insistem em chamar privilégios de direitos adquiridos, que se aferram na defesa do que deveria ser motivo de vergonha.
A insistência na manutenção de absurdos como férias de dois meses desgasta o serviço público e colabora para o fortalecimento de uma visão privatista capaz de afiar a motosserra de Milei.
A manutenção de privilégios fiscais bilionários colabora para fortalecer a ideia de que o Estado é grande apenas para garantir favores aos amigos de sempre.
Brasil e Argentina têm realidades bem distintas, mas também algumas semelhanças. Diferentemente do que ocorreu nos anos 1980, não dá, hoje, para se falar em Efeito Orloff, fenômeno que pegava carona no slogan de uma vodca que se tornara muito popular: "Eu sou você amanhã". Mas nunca se pode descartar a presença de metanol na caipirinha.