Tráfico, milícia, corrupção política e policial, violência, tiros, mortes, mortes, muitas mortes — "A vida de cada um", filme de Murilo Salles exibido no Festival do Rio, é uma história carioca que relata fatos que poderiam ocorrer em tantas outras cidades brasileiras.
Narrado em ritmo de thriller, o filme acompanha a trajetória de duas crianças, filhos de um PM, Domingos Macedo (Caco Ciocler), que impõe seu poder no Morro do Andaraí, na Zona Norte carioca. Mas um mero resumo da trama apontaria para um caminho falso e simplório; o que se conta vai muito além do previsível.
O longa passa ao largo de conflitos entre mocinhos e bandidos, até porque estes — praticamente todos os personagens — acham que são aqueles, sabem muito bem justificar o que fazem, avaliam que estão do lado certo, e são muitos os lados abordados.
O título do filme bem que poderia ser "A razão de cada um" — apresenta cidadãos inteiramente loucos com carradas de razão, como ressalta Chico Buarque em "Estação derradeira". Ao abrir mão de uma abordagem maniqueísta, Salles mostra o quanto aqueles desvairados estão perto de nós, e como são normalizados em nosso cotidiano.
"A vida de cada um" remete a episódios recentes da nossa história, cita datas relevantes de um passado ainda muito presente. Mas a sociedade entre o deputado corrupto que homenageia um policial miliciano mostrada na tela não busca o caminho fácil da simples identificação. Joga num universo mais profundo e assustador, que remexe a lama abundante num buraco que se apresenta infinito, cavado a cada dia com a parceria e os votos de muita gente.
Quase 30 anos depois de "Como nascem os anjos", Salles propõe quase uma releitura de seu próprio filme de 1996 — mas agora não há mais espaço para qualquer inocente. O novo longa é um ótimo tratado sobre o processo de geração de anjos caídos, mostra como são paridos e embalados os tantos diabos que infernizam e seduzem.
A trajetória de Flávia (na fase adulta interpretada por Bianca Comparato) é um inventário de impasses, uma sucessão de becos cujas saídas precisam ser construídas de maneiras que, aos poucos, tornam-se quase convencionais — é preciso dar um jeito, meu amigo, alertou Erasmo Carlos.
A protagonista não vacila ao armar suas alternativas, atalhos que a afastam e, ao mesmo tempo, de maneira aparentemente contraditória, a aproximam do pai. Um impasse e um desespero em boa parte traduzidos numa cena de briga entre Flávia e outra mulher, luta que resume o tanto de ódio, de amor e de desencanto que o filme projeta no espectador.
Um jeito sempre acaba sendo dado, de maneiras supreendentes e, mesmo, assustadoras. Ao falar de vidas bandidas que habitam o Rio, de nossas ladeiras, encruzilhadas e ribanceiras, Salles despeja munição pesada na tela e fala da vida de cada um de nós.