Por: Fernando Molica

O início de um novo ciclo de ódio

Boa parte de Gaza foi destruída por Israel | Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Folhapress

Passadas as comemorações pelo fim dos ataques a Gaza, é importante ressaltar que o acordo de cessar-fogo tende a marcar também o início de uma nova fase de hostilidades, mortes e manifestações de ódio.

Houve apenas uma trégua que em breve será interrompida se não forem tomadas medidas fundamentais para a pacificação da região.

Seria inocência achar que haverá tranquilidade depois das mortes — 67 mil vítimas de Israel e 1,2 mil do Hamas — e da quase completa destruição do território palestino.

O novo ciclo de violência foi iniciado com os ataques do Hamas há dois anos e ganhou mais impulso com a reação desproporcional de Israel, algo que desautoriza utilização da palavra "guerra" — não havia dois estados em conflito, mas um massacre em que até a fome foi usada como arma.

Não houve um acordo de paz, mas uma espécie de rendição mútua. O Hamas, que parece ter subestimado a capacidade de reação do inimigo em 2023, sucumbiu diante de um adversário incomparavelmente mais poderoso; Israel foi obrigado a recuar diante da condenação feita até por aliados tradicionais e ao ser pressionado pelo maior deles, os Estados Unidos.

Nascido da tragédia do Holocausto, o país parece ter queimado praticamente toda a simpatia internacional — a imagem do plenário quase vazio da ONU que recebeu Benjamin Netanyahu resume, no campo diplomático, o estrago acumulado pelo estado judeu.

Israel, mais uma vez, tem a chance de reconhecer que a questão palestina não será resolvida com armas. Não é preciso ir muito longe para saber que é impossível haver paz na miséria. A história ensina que as condições impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes foram decisivas para a revolta e o inconformismo que semearam a eclosão do nazismo. 

A prosperidade costuma desarmar espíritos; a fome tende a torná-los ainda mais ferozes. Pessoas que não têm o perder costumam ser mais agressivas. Dá para imaginar o que sentem aqueles que perderam pais, amigos e casas nos últimos dois anos, jovens e crianças que cometeram o crime de nascerem um pouco mais pra cá ou pra lá de fronteiras tão incertas e perigosas.

Nas últimas décadas, governos israelenses, todos eleitos pela população do país, desprezaram diversas oportunidades de construção de uma saída pacífica. Sabotaram acordos, desrespeitaram decisões da ONU, incentivaram o povoamento de territórios ilegalmente ocupados, patrocinaram ações que mataram muita gente.

Radicais do lado palestino também fizeram sua parte para dificultar a possibilidade de uma solução — os ataques terroristas de 7 de Outubro foram o ápice desse processo.

Nas próximas semanas, relatos de ex-reféns e de ex-prisioneiros vão reverberar pelo mundo. Serão mostrados depoimentos de famílias que perderam parentes e o drama dos que não tem comida nem onde morar.

A repetição de ataques que matam inocentes serve apenas para exacerbar o ódio, para fazer com que o outro seja visto não como ser humano, mas como encarnação do mal.

Isso dificulta até mesmo situar o conflito num determinado contexto histórico, como no caso do nazismo: seria insano culpar alemães de gerações mais recentes pelo que houve a partir dos anos 1920.

Não há consenso sobre o que será feito daqui para frente, pouco se fala de medidas que possam aplacar o ódio renovado e apontem para uma possibilidade de convivência e de tolerância.

Diante do que houve, já não bastaria um compromisso — ainda incerto — de criação de um estado palestino, seria necessário implantar uma espécie de Plano Marshall para recuperar Gaza e viabilizar economicamente o novo país. Um país que, queira ou não Israel, é inevitável, até para que chacinas deixem de ocorrer.