Por: Fernando Molica

Dores escalavradas e reconstruídas

Marcelino Freire remói história de pai e filho | Foto: Divulgação/Editora Record

Escalavrar, diz o "Dicionário Houaiss", é causar arranhaduras, esfoladuras, danos; ferir cabeça, arrancar a pele. E é por aí que Marcelino Freire constrói, tijolo a tijolo, pedra a pedra, seu romance "Escalavra" (Amacord).

Mais do que construir e erguer, ele rala histórias doloridas que partem de uma relação muda entre pai e filho; conversas sem palavras, escoradas em gestos fugazes, em paredes erguidas para impedir contatos e revelações, feitas para esconder fatos e corpos, para tentar matar, ocultar e concretar um passado, isolá-lo.

O romance se passa no interior do Nordeste, numa cidade e num tempo inexatos — a fúria de uma repressão característica do período posterior ao Golpe de 1964 convive com o ruído das pás de estruturas modernas que sequestram o vento para produzir eletricidade.

O movimento das hélices parece contribuir para despedaçar ainda mais os fatos, despojá-los de seu contexto, procura matá-los, enterrá-los, empurrá-los para um abismo.

Escrito numa linguagem que remete a tradições orais, diagramado e impresso de maneira a criar margens nada plácidas em cada página e que forçam os limites do enquadramento, "Escalavra" tenta, na figura do protagonista Dagoberto, dar sentido a histórias exiladas, empurradas para um não lugar, onde permaneceriam isoladas, incapazes de produzir vida e sentido.

Dramas que se revezam numa perspectiva de brutalidade e ignorância — lógicas concentradas, anunciadas e renovadas pelo fiscal de obras. Seria então preciso fiscalizar, repreender, censurar, impedir que o vento e o passado corressem soltos por aí. 

Ameaçador, o conhecimento precisa ser espantado, chutado de lá, necessita ser escalavrado num processo que quebre a perigosa sequência lógica de sentidos e de construção de futuro expressa pelo método de alfabetização de Paulo Freire, citado de forma indireta ao longo do texto. 

Romance classificado pelo autor-narrador-personagem de "megalítico", palavra que remete a sepulturas e a construções monumentais feitas de grandes pedras, "Escalavra", porém, é erguido com pequenos seixos, rochas largadas pelo caminho que Dagoberto recolhe como seguindo lições de João e Maria — um trajeto que, a duras penas, precisa ser refeito e recontado pelo retirante que volta à sua terra, à terra que nunca foi sua.

O livro percorre a trilha esburacada e cheia de armadilhas — o passado está sempre ali, à espreita — para, assim, propor uma reconstrução, um rearranjo de pedras, de dores, de feridas no rosto e na alma.

A história precisa ser lembrada para que não morra, mas cada lembrança é também uma demolição e um reerguimento, um pouco mais pra lá, um pouco pra cá — a busca de algum prumo, ainda que instável e provisório e impreciso, é permanente.