O escândalo da adulteração de bebidas remete a uma leitura enviesada do clássico "Deixa isso pra lá", composta por Alberto Paz e Edson Menezes e sucesso de Jair Rodrigues.
É aquela história do "Deixa que digam/ Que pensem/ Que falem/ Deixa isso pra lá/ Vem pra cá/ O que que tem?".
A letra deste que é tido como o primeiro rap brasileiro fala na possibilidade de um encontro amoroso, em não ligar para fofocas e intrigas que condenassem "Mãozinha com mãozinha pra lá/ Beijinhos e beijinhos pra cá".
Até aí, ótimo, cada um que cuide de sua vida. O problema é a tradição nacional de minimizar alguns crimes, de tolerância com o ilegal.
No Rio, a lógica do deixa isso pra lá, o que que tem?, sedimentou o poder do jogo do bicho, transformou em personagens populares muitos dos criminosos que o exploram.
A apropriação do Estado por interesses particulares é, para citar outro clássico da MPB, coisa nossa.
E tome de nomeações para cargos que deveriam ser preenchidos por concurso, de penduricalhos em salários de magistrados e de integrantes do Ministério Público, de licitações dirigidas, de obras consideradas emergenciais apenas pela necessidade de encher bolsos de políticos, de grana para o guarda de trânsito, de emendas que deixam cicatrizes no orçamento. Deixa que digam, que pensem, que falem.
Falsificar bebidas não é algo simples, para que o esquema seja lucrativo é necessário ter uma escala mínima de produção.
Isso inclui fornecimento de garrafas, insumos, locais para preparação e envase do veneno, estrutura de distribuição, contatos com comerciantes e donos de bares que aceitem participar da fraude e que repassem as bebidas para o público. Um processo sofisticado, que indica diferentes graus de tolerância e de cumplicidade de empresários, policiais e fiscais.
Nosso Código Penal é uma espécie de obra aberta, quase uma pintura abstrata. É passível de diferentes graus de tolerância e de interpretação — não faz tanto tempo assim, dizia-se que, no Brasil, lei era igual a gripe; umas pegavam, outras não.
Há até poucos anos, era quase consenso de que não se deveria meter a colher em briga de marido e mulher, por mais que esta fosse espancada. O mesmo em relação a agressões cometidas por pais contra seus filhos. Mais recentemente, ativistas de redes sociais resolveram batizar de exercício de liberdade de expressão crimes de injúria, calúnia e difamação.
Falsificar bebidas acabou sendo um crime menor, quase risível, um jeito de tirar onda com o mané que se julga o superior por beber uísque, vodca e gim supostamente importados.
Algo tão aceitável, quiçá também passível de anistia ("Os meninos não fizeram por mal, não queriam matar ninguém"), um crime menor, assim como a tentativa de se dar um golpe de Estado, instituir uma ditadura e reabilitar a prática da tortura. Deixa que digam, que falem, que bebam até cair, mortos.