Por: Fernando Molica

Sudário de Vargas virou boneco de posto

Detalhe do pijama que Vargas usava ao se matar | Foto: FM

No 71° aniversário do suicídio de Getúlio Vargas, o Museu da República, palco da tragédia, resolveu expor alegoria que transforma em boneco de posto o pijama usado pelo presidente no momento de sua morte. A peça de roupa traz o buraco da bala e marcas de pólvora e de sangue na altura do coração.

Retirado na última sexta-feira depois de muitos protestos, o adereço que reproduz o paletó do pijama ficou exposto numa das fachadas da instituição que funciona no Palácio do Catete, antiga residência presidencial e sede de governo.

A peça flutuava diante da sala onde, na noite do dia 23 de agosto, Vargas comandou aquela que seria sua última reunião ministerial. Horas depois, na manhã do dia seguinte, ele apontaria para o peito o revólver Colt calibre 32, com cabo de madrepérola — saiu da vida para entrar na história, como registraria em sua carta-testamento, um de nossos mais importantes e dramáticos testemunhos.

A profanação simbólica da peça que resume e projeta tantas de nossas expectativas e impasses revela o descaso que boa parte do país tem por sua própria história. Não que o tal pijama não possa inspirar diferentes releituras, poderia até mesmo servir de inspiração para alguma alegoria carnavalesca.

O problema foi a exibição do monstrengo no local do suicídio, a poucos metros da vitrine onde repousa a peça original, sudário que cobriu o corpo do mais importante político brasileiro do século XX, homem que encarnou esperanças e contradições do nosso país.

Há uns 40 anos, um jovem cubano me fez gaguejar ao me perguntar se Vargas tinha sido de direita ou de esquerda. Vacilei, dei uma resposta confusa, inconclusiva.

Como resumir um político nascido de uma crise na oligarquia, que encarnava uma proposta de modernização e que, ao mesmo tempo, implantaria uma ditadura de inspiração fascista? Um líder que viraria referência para a esquerda ao introduzir direitos trabalhistas e criar a Companhia Siderúrgia Nacional e a Petrobras? Um presidente que se transformaria em alvo de uma direita furiosa, irresponsável e golpista liderada por Carlos Lacerda?

Sete décadas depois de sua morte — o aniversário foi ontem —, Vargas permanece como um grande referencial de nossa história, formula respostas que se transformam em novas perguntas, num movimento interminável. 

O sangue exibido em seu pijama espirra em todos nós o tamanho de tantos desafios presentes em nosso país, faz arder nossos olhos, mancha nossos rostos. A pólvora ainda é capaz de queimar.

Exibido num local tão importante para a vida brasileira, o simulacro desengonçado da mortalha de Vargas fazia coro a um projeto de devastação e de autodestruição, de eliminação de uma memória de lutas populares e de propostas de construção de um país minimamente inclusivo. Debochava de nossa história, de nosso passado, ironizava perspectivas de futuro.