Ao culparem o governo e o Supremo Tribunal Federal pelo aumento das retaliações norte-americanas e pela queda das ações de bancos, bolsonaristas indicam que, na II Guerra Mundial, criticariam os franceses que resistiram à ocupação nazista: afinal, eles estariam cometendo o desatino de provocar a Alemanha de Hitler, uma potência econômica e militar.
Por essa lógica, estaria certo o marechal francês Henri Philippe Pétain, que instalou na estação de águas de Vichy um governo fantoche e colaboracionista. Um gabinete vergonhoso, que ajudou os nazistas com a criação de leis antissemitas, deportou judeus e outros indesejados para campos de concentração, forneceu mão de obra para indústrias alemãs e chegou a mandar soldados para lutar ao lado das tropas de Hitler.
Pétain fez de tudo para agradar o invasor, para não irritá-lo, não provocá-lo. O que importava não era defender a soberania nacional francesa, a integridade do seu território, a autonomia de suas instituições, a democracia, a altivez de seu povo — diante de um inimigo poderoso, o melhor a fazer seria fazer tudo que ele mandasse.
Errados, portanto, seriam os integrantes da Resistência, homens e mulheres não apenas franceses que arriscaram suas vidas — incontáveis deles foram torturados e mortos — para dificultar o avanço e a consolidação do poder nazista. Eles resgataram priosioneiros, sabotaram pontes, estradas e prédios, repassaram informações aos exércitos aliados.
Resistiram ao ditador que se impunha pela força, que desprezava e invadia outros países, que discriminava e mandava eliminar pessoas de origem étnica-religiosa não compatível com a ideologia nazista; assassino que desejava construir um império de alcance mundial, que não admitia discordâncias ou manifestações de independência.
O exemplo de ode à submissão vale para qualquer outro episódio que envolva relações entre opressores e oprimidos. Escravizados certamente ouviram que era melhor obedecer para não serem vítimas de novos e mais cruéis castigos. Quantas mulheres já não foram aconselhadas a ficarem caladas diante de agressões de companheiros?
É razoável discutir o efeito prático da decisão do ministro Flávio Dino, do STF, que desconheceu a subordinação de empresas e cidadãos brasileiros a leis estrangeiras. O mundo é bem mais complicado, bancos aqui sediados têm negócios nos Estados Unidos, não será fácil cumprir a determinação judicial. Mas o gesto foi importante para ressaltar a soberania do país, que não pode tratado como uma espécie de mega Porto Rico, praticamente uma colônia norte-americana.
Bolsonaristas têm o direito de reclamar do STF, da Procuradoria-Geral da República, do presidente Lula. Chega a ser escandalosa, porém, a aliança com interesses estrangeiros, é inconcebível que um deputado federal, no caso, Eduardo Bolsonaro, comemore atos de chantagem cometidos pelos Estados Unidos, que confesse trabalhar para que a corda aperte ainda mais nossos pescoços; que não se envergonhe em usar o poder norte-americano para ameaçar o Brasil e suas instituições.
Apenas a hipocrisia que rege relações internacionais permite que Donald Trump fale em desrespeito aos direitos humanos por aqui: ele que deporta imigrantes para o centro de tortura de El Salvador, que manda prender outros estrangeiros em prisão desumana na Flórida, chamada de "Alcatraz dos jacarés".
A história é implacável. Transformado em símbolo da expansão nazista, o verso "Deutschland über alles" ("Alemanha acima de tudo", veja só) acabaria, depois da guerra, sendo retirado do hino nacional alemão. O marechal Pétain foi condenado à morte por sua colaboração com o invasor; a pena foi convertida em prisão perpétua. Ele morreu na cadeia, seu nome permanece associado à covardia e à traição.